quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

dezassete, 17

Não somos palhaços, nem renas rudolfos, nem estamos constantemente constipados. Mas temos sim uma luz vermelha na ponta do nariz. Daquelas luzinhas que indicam, como num televisor ou numa aparelhagem, o stand by: a espera.
Uns lidam melhor que os outros, mas no fundo qualquer um se irrita com isto – uma sombra no nariz como se de uma mosca se tratasse.
Há quem ignore e viva constantemente assim, a gastar energia de forma inócua.
Há quem tente enxotar distraidamente a mosca de várias formas – pode-se pintar o nariz de azul, tapar com base, colocar um penso rápido (de efeito célere), fingir de fingimento fingido que está mesmo tudo como queremos – mas a mosca regressa sempre. Pois é.
Há quem tente pegar no respectivo telecomando para acordar o dia. O problema é que este nem sempre está ao alcance. Cansa tentar chegar-lhe.
Cansa a luzinha vermelha na ponta do nariz, o stand by: a esperança.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

bolsos cheios de expectativas

Mordaz, ele bebia um gole de licor enquanto procurava onde tinha posto, dentro do bolso, as suas últimas ideias. Trazia-as perto das ideologias, num pacote pequeno de plástico que tocava Miles Davis cada vez que se abria.
Mas não sabia onde o tinha posto. Em qual dos trinta e um bolsos estava.
Entretanto o licor, de sabor ténue a álcool, terminou ficando mais uma ferida, se não curada, pelo menos desinfectada.
Sem ideias e vazio de ideologias decidiu perder a paciência e para isso mudou de bolso, sem olhar, distraindo-se com o vazio, o pacote de lã onde a guardava.
Procurou uma maçã numa boca para morder. A primeira mulher nessa situação gostou, mas preferiu regressar à maçã. Ao separarem-se tropeçou e de um dos trinta e um bolsos caiu-lhe o pacote de borracha que continha o mapa dos bolsos.
Abriu-o e, depois de analisado o mapa, redescobriu as ideias. Poderia ter posto em prática algumas delas, mas estava sem paciência para isso.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

dezasseis, 16, diz às seis

Vivemos num processo de culpa quase constante. Herança pesada da tradição.
Temo-la externa, acusatória e arranhada nas íris. Dedo apontado à cara. Confunde-nos, aborrece-nos, reformula-nos e oferece-nos um resultado palpável nas entrelinhas. Insatisfeitos satisfazemo-nos com isso e oferecemo-la de regresso aos outros - e de bom grado:
- Anda amigo; vem crescer no mundo dos grandes. Vamos todos ao Gólgota expiar os nossos pecados. Não digas que não… senão.
Ou então, coitadinhos, viramo-nos para o lado e pedimos retrocesso, sublinhados, dados estatísticos que comprovem a fórmula original:
- Anda amigo, diz-me que estou certo; que é verdade; que é sempre assim.
Depois existe a culpa interna. Irregulada pelos de fora e incontrolável por nós. Aquela menina que remói dentro do peito, o cadáver escondido nas sombras do movimento dos cabelos, o pisa-papéis coronário. Traço genético que nos faz semi-viver imbuídos no seu aroma de formol.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

a tragédia do sr. godinho

Godinho habitava entre as árvores e as rãs da floresta encantada. Todos os dias ia às amoras e às framboesas... No outono aos cogumelos.
Certo dia numa das sua caminhadas aconteceu a tragédia!!! (rufar de tambores) Apaixonou-se. E logo por quem! Pela árvore mais alta e fria da floresta.
Nunca lhe chegaria, nunca ela o conseguiria acompanhar, o papel passou a parecer-lhe mórbido e as amoras sangue.
Godinho infeliz decidiu fechar as portas do silêncio e gritar aos quatros ventos a sua tragédia. Apenas dois dos ventos o ouviram tombando a árvore em cima de Godinho.
Fertilizaram juntos a mesma terra.