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segunda-feira, 3 de setembro de 2012

she didn't grow up



Às onze horas da manhã, estávamos deitados na praia de nariz para o ar.
Soube bem a areia a entrar-nos na boca, nas orelhas, no nariz, nos olhos…
Estávamos múmias desenterradas à tona do céu. O Sol sabia a Sol e ela ali sabia-o bem.
Não valia a pena continuar a esperar por melhor. Os pés no rio ganharam lodo e pareceu que de pé se estava pior – caiu.
Soube erguer-se mas não soube crescer e eu nela não cresci demais perdido em labirínticos fios de ouro e baba. Gostávamos de subir as escadas e ver o mundo à volta escasso espaço, útil inutilmente, horizonte vertical, obliquidade deferida.
O protesto saiu à rua num dia meu de espreguiçar e foram-me quebrados os caules pela causa.
Estou, agora, deitado na calçada a pensar no caminho que temos a percorrer longe um do outro e separados por uma falha negra.
O vento não se entranha, mas passa a ideia de que é difícil não lhe chegar.
Agora não há areia… Só pó a mudar a veias de toda ela.

sábado, 19 de maio de 2012

o ponto mais alto


Ontem subi ao topo do ponto mais alto, aquele que ninguém sabe onde é.
De lá de cima via tudo; de tal forma tudo que demorei muito até perceber o que era que estava à minha frente, depois de acabar o cume e começar a escarpa.
O meu pequeno conjunto de neurónios apenas concebia ver um espaço amplo e alargado com um pôr-do-sol ao fundo, o verde das árvores, as linhas das estradas, o castanho da areia e o azul do mar. Uma imagem tão banalmente bonita que a conseguia desenhar com pedaços de outras que já antes tinha visto. Ia inspirando pelo caminho ingreme de forma a encaixar o puzzle na minha cabeça.
Não foi bem uma surpresa, daquelas que nos fazem libertar adrenalina e responder emocionalmente regressando depois ao normal, que me atingiu. Foi antes uma espécie de estalada irreversível no hipotálamo, um pontapé no sistema límbico. A verdade é que depois de ver o que vi nada seria igual para mim, para ninguém.
Como já disse demorei muito até conseguir percepcionar e decifrar o que se apresentava perante aquele elevado pico – perante os meus olhos não estava o espaço que antevi, estava antes todo o tempo, todo: o que passou desde sempre, um sempre tão amplo que me provocou dores de cabeça e sangramento pelo nariz; o agora, neste momento em que me encontro no cimo do topo, neste momento em que escrevo, neste momento em que releio, neste momento em que alguém lê o que escrevi; e o depois tão infinito como o antes, revelador de tudo em mim, em ti, em nós.
Ao olhar para a vista do tempo apercebi-me que passaram muitos anos desde que cheguei ao topo, que não foi ontem, embora o tenha sido, que lá tinha chegado, e que amanhã desceria, embora muito depois de amanhã. Vivi eras estagnado no mesmo local do topo a olhar em frente, a ver atrás, no meio e bem à frente.
Sem me mexer passei por todo o tempo e quando pensei perceber o tudo que se me apresentava desmaiei. Por sorte, ao cair bati com a cabeça num arbusto fofinho e não me lesionei. Por sorte caí de costas para a escarpa do topo do ponto mais alto, aquele que ninguém sabe onde é. Sem olhar para trás, sabendo já de antemão que era o que faria, desci.
Sentei-me aqui em baixo a olhar para um papel e a escrever isto. Fiz isto ontem, fiz isto hoje, no dia em que lês, e vou fazê-lo amanhã de novo, e depois, todos os dias, para sempre.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

A minha tia, ontem à tarde, disse-me uma coisa que me deixou completamente estupefacto


Pois sim, meus caros, agora que já consegui a vossa coscuvilheira atenção, tenho-vos a indicar o caminho da salvação, a epifania luminosa da redenção…

quarta-feira, 28 de março de 2012

elipses


Sonhei esta noite que a tua casinha velha estava abandonada e reduzida metade do seu tamanho a armazém dos vizinhos. A mesma casinha com que tinha sonhado uns anos antes, aquela que ficava num largo de casinhas baixinhas para onde se entrava por debaixo do único prédio alto. Sonhei que desse prédio alto saiam senhoras, com os seus mochos, a cantar concertadas todas à mesma hora, sincronizadas com os animais. Depois saíam a voar pela janela, tanto as senhoras como os mochos, e só se tinha que ter cuidado com as bombas intestinais dos pássaros. E iam por outros túneis para outras ruelas e larguinhos.
Nesse largo havia ainda, mais ou menos do lado esquerdo, quem esta de frente para o corrente da tua casa velha, um portão velho e alto, fechado para as crianças não saírem no recreio; do outro lado do portão ficava África e fazia-me confusão as crianças não poderem ir lá.
No lado diametralmente oposto à casa ficava o cemitério fechado, viam-se umas campas velhas, com letras apagadas lá dentro. Ao dado esquerdo do portão ferrugento do cemitério estava, como sempre, o único apontamento histórico do largo, a janela gótica, baça e decadente como o tempo.
Quando sai do largo, depois de olhar para a tua velha casinha e me lembrar do que lá tínhamos passado fui a uma loja de brinquedos, peguei numa besta azul e vermelha e disparei a seta que estava engatada com uma rolha na ponta, depois de tirar a rolha. Vieram atrás de mim, mas não me apanharam porque os consegui enganar com um ardil de criança.
Sonhei com isto tudo e acordei triste por não te ter visto no sonho, por não te reconhecer senão na tua ausência presente.
Talvez daqui a uns meses regresse e a casa esteja de pé contigo lá dentro à minha espera como antes; os mochos usem mini fraldas para aves; o portão para África possa ser aberto finalmente; a janela recupere a sua glória; e a seta disparada pela besta consiga atingir o seu destino. Talvez me apanhem finalmente nesse sonho.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Como sempre


Tinha um bocado de vento nos meus olhos. Tentei soprá-lo mas só consegui piorar a situação. Grave portanto. Com isto encaminhei-me às apalpadelas à procura da saída. Fui contra um vidro lambido e senti-me mais patético do que o costume. Depois de alguns desvios intuitivos que me restauraram a confiança caí, caí como se num abismo me afundasse, durante horas de aflição e desassossego. Coração na boca, pulmões vazios, cabeça a andar à roda. Toda esta inquietude secou-me até às lágrimas, conseguindo assim limpar o vento nos meus olhos. Vi novamente, constatei onde estava. Levantei-me estóico, peito feito e orgulho redobrado pela sobrevivência, e saí com os olhos no fogo, lá fora, à minha frente. À minha espera.

sábado, 19 de novembro de 2011

nulo

Os acontecimentos desta vez foram completamente ímpares sendo que não há memória na história de algo desta magnitude. Apenas há mais de um século os números se aproximaram dos de hoje. Várias testemunhas relatam o quão impressionante foi. Houve mesmo uma delas que pormenorizou as graves consequências directamente relacionadas com a situação descrita. Infelizmente não foi a única e apesar de ainda não estarem completamente contabilizados os estragos, facilmente afirmamos que nunca nada foi visto como hoje. O tempo para recuperar todos estes prejuízos será muito longo e necessitará de todas as ajudas possíveis. Especialistas de várias áreas já se dirigiram para o local tendo-se distribuídos por várias zonas ajudando e recolhendo informações para perceber melhor a raiz da situação e definindo caminhos para tentar colmatar as falhas por esta levantada.
Repetimos, nunca nada foi visto assim.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Obrigado Gordon

Gordon, já anteriormente laureado com agradecimentos, fez sempre por parecer ser bom. Poucos, como eu, reconhecem a sua incapacidade para tal, destacando-o sempre que possível.
Gordon, esse gordo nódulo de pus virulento residente no ânus estragado de uma hiena leprosa, quase ajudou uma família, quase concluiu os estudos, quase alimentou um pobre mendigo na rua, quase salvou a humanidade da desgraça e perdição. Mas não.
O que Gordon conseguiu foi ter o seu nome em vários jornais, vários filhos varões, várias aberturas de telejornal, vários programas prime time e não em várias, mas em todas as listas de agradecimento. Todas. Sempre: “Obrigado Gordon!”
Gordon esse inútil pedaço de esterco vomitado pelas entranhas apodrecidas de um abutre, por todos bajulado, apenas conseguiu ser famoso à custa da sua mediocridade.
Gordon até a falecer foi medíocre, tendo falhado redondamente várias vezes até à fatalidade final mais falada do mundo ter mesmo acontecido. E, mais uma vez, todos fizeram questão de lhe agradecer pelo que quase fez. Eu não. Mas aproveito agora para o fazer pela primeira vez. Obrigado Gordon… por teres morrido!

quarta-feira, 13 de julho de 2011

anoitece em paz

A minha manhã está profundamente enraizada em ti, até ao cotovelo. Respira fundo e pega na minha mão.
Quando morreres vou trazer trinta fadistas-poetas para cantarem o épico da aurora boreal que foi a tua vida.
Vão vir todos em fila com sapatos pretos direitos iguais e sapatos azuis esquerdos iguais. As calças de flanela aos quadrados cinzentos e brancos vão deixar ver um vislumbre dos tornozelos. No tronco vão vestir apenas suspensórios vermelhos, sendo que os que não tiverem pêlos no peito e nas costas trarão um implante artificial à base de esquilo morto.
Na mão direita vão trazer o caule de uma dália que será utilizado para bater nas pessoas que assistirem e para simularem um microfone. Na mão esquerda trarão um saco de plástico verde com a voz lá dentro.
Apenas à vez vão abrir o saco e cantar-te, isto quando, à vez, subirem para cima do teu caixão. Caixão cor de voo de graça constipada com anéis, como sempre exigiste.
A casa estará pintada de preto solidão, os móveis de branco luto, o chão de roxo paixão e o tecto de vermelho saudade.
Até lá só me resta esperar e guardar os papelinhos que tenho espalhados pelos bolsos dos meus casacos com as coordenadas de onde se encontram estes artistas.
O teu livro, fechado em ti, abro-o eu.

terça-feira, 21 de junho de 2011

casa

Ontem descobri o caminho para casa. Estava numa esquina a olhar para ti. Passaste depressa e olhaste para uma montra com macacadas pulguentas e pungentes. Decidi seguir-te pela rua abaixo, pela rua acima, pela rua ao lado… Sentiste-me, eu sei. Eu sei porque te senti a sentires-me. Mas não fizeste nada em relação a isso. Entraste no barco e eu fui atrás. No baloiçar do mar, das ondas, do sal, sorriste e desapareceste dentro de mim. Saltei para fora do barco e encontrei a Casa. Sorri completo e feliz pela primeira vez desde o início do mundo.

quinta-feira, 17 de março de 2011

espirais de soluções

As ratazanas saíram das chávenas de chá que estavam no armário. Tomaram conta de todos os bebés enquanto os pais saíram para tomar café numa loja de rebuçados espirais. O efeito do acontecido foi inócuo. Os bebés revoltaram-se e arrancaram à dentada as orelhas das ratazanas que, infelizes e virtualmente surdas, fugiram de regresso a um mundo que nunca as acolheu. O medo do retorno plantou os pais nos cafés com raízes profundas, deixando os bebés sozinhos e gulosos de espirais em rebuçado.
Uma nave colidiu no tempo e eclodiram todas as resoluções dos problemas.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

bolsos cheios de expectativas

Mordaz, ele bebia um gole de licor enquanto procurava onde tinha posto, dentro do bolso, as suas últimas ideias. Trazia-as perto das ideologias, num pacote pequeno de plástico que tocava Miles Davis cada vez que se abria.
Mas não sabia onde o tinha posto. Em qual dos trinta e um bolsos estava.
Entretanto o licor, de sabor ténue a álcool, terminou ficando mais uma ferida, se não curada, pelo menos desinfectada.
Sem ideias e vazio de ideologias decidiu perder a paciência e para isso mudou de bolso, sem olhar, distraindo-se com o vazio, o pacote de lã onde a guardava.
Procurou uma maçã numa boca para morder. A primeira mulher nessa situação gostou, mas preferiu regressar à maçã. Ao separarem-se tropeçou e de um dos trinta e um bolsos caiu-lhe o pacote de borracha que continha o mapa dos bolsos.
Abriu-o e, depois de analisado o mapa, redescobriu as ideias. Poderia ter posto em prática algumas delas, mas estava sem paciência para isso.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

a tragédia do sr. godinho

Godinho habitava entre as árvores e as rãs da floresta encantada. Todos os dias ia às amoras e às framboesas... No outono aos cogumelos.
Certo dia numa das sua caminhadas aconteceu a tragédia!!! (rufar de tambores) Apaixonou-se. E logo por quem! Pela árvore mais alta e fria da floresta.
Nunca lhe chegaria, nunca ela o conseguiria acompanhar, o papel passou a parecer-lhe mórbido e as amoras sangue.
Godinho infeliz decidiu fechar as portas do silêncio e gritar aos quatros ventos a sua tragédia. Apenas dois dos ventos o ouviram tombando a árvore em cima de Godinho.
Fertilizaram juntos a mesma terra.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

vaga brecha esse fuso

Existem vários elementos pretos no meu tabuleiro de xadrez. Os quadrados e as peças: O Sr. Lei, a Sra. Lainha, os Chavalos, os Bichos, as Touras e os Pinhões. Os elementos brancos são inexistentes.
Eu proponho várias vezes aos meus comparsas a criação de mais três ou quatro tipos de peças baseadas na entropia apresentada pelo movimento perene da folha da coca.
Eles preferem mascar apenas como camelos debaixo da sombra. E trazem-me por vezes, de forma bem apresentada, mulheres bonitas de seios fartos, mas rijos, com a tez brilhante da juventude, ventres lisos e sexos apetitosos.
Eu ganho-lhes sempre ao xadrez e depois vou mergulhar no mar e conversar com as gaivotas enquanto partilho com elas o salgado das ondas.
Os meus pais sempre me disseram para ter cuidado, mas eu nunca consegui deixar de ejacular perante a visão deslumbrante de um belo prato de lasanha.
Os meus chinelos, por causa disso, estão sempre cheios de areia. Guardo-os sempre cá fora quando vou pensar no xadrez.
Sob uma almofada ficam também as minhas esperanças de corroborar a existência de um cheiro que me agrade. O senhor Lei e a senhora Lainha habitam assim muito tempo dentro das minhas narinas. Evitam o cheiro de entrar.
Quando lambo as costas de uma mulher fico olfactivamente ausente pela felicidade que isso me traz. O sabor a deus é extasiante. Faz-me ganhar ao xadrez.
Procuro-me sempre nos quadrados marotos dos cocos, mas só estou aqui a morder os dedos por detrás das unhas. Pelo menos ainda sei o que me espera, e embora isso não tenha directamente a ver com marmelos rosados e carnudos, isso agrada-me sobremaneira.
Vou pintar todos os elementos do meu xadrez de preto e acabou-se.
Pranto final.

manifesto do proTeLariado


A chatice é uma pena que destila as ideias com o deslizar da tinta


Já tive mais paciência.
Agora; Hoje não. Ponto final no adiar da paciência e chafurdar no tédio do amanhã.
Façamos coisas é hoje! Porque apenas esse todo, isso é que interessa verdadeiramente.
Somo úteis e temos força e é AGORA que este combustível motriz tem que ser utilizado.
Já tive mais paciência para o discurso do “mas ai que é preciso isto e aquilo” e do “ai que eu não sei”, e do “ai que medo”, e do “agora não posso porque tenho coisas a fazer e assuntos a tratar”. Precisos somos nós! O que sabemos chega sempre para aprendermos! O medo é um menino muito mais frágil que nós! Os assuntos a tratar são só coisas de fazer entediar!
Larguemos a almofada do tédio… e hoje não é amanhã como de costume!
Já tive mais paciência para o discurso do infortúnio do destino que nos ata a as mão atrás da cabeça impedindo-nos de usar ambas: o ai que está mal; ai que me dói a cabeça; ai que seca; ai não sei; ai que se fosse assim…
Cortem-se as amarras. Que seja feita a nossa vontade transformando o mal em motivos de orgulho. Que venham os analgésicos! As pílulas da decisão!
Pois então, assim seja!
Assinemos os assins na história, não os sopremos como o fumo etéreo e efémero do tabaco.
E porque não? Porque sim. Porque podemos e isso basta. E se podemos tem que ser hoje, agora, já e aqui.

NÃO HÁ NADA MAIS IMPORTANTE PARA FAZERMOS DO QUE O QUE TEMOS PARA FAZER AGORA! ISTO MESMO

Já tive mais paciência para a revolução sonhada – des rêves, toujours des rêves - mas os sonhos são só uma treta por si só, oh sonhadores!
As realidades que fazemos deles é que interessam na luta contra o amorfo, o procrastinador, o letárgico, o comatoso que existem confortavelmente instalado dentro de nós.
Já tive mais paciência para morrer aos pequenos pedaços na lama lodosa do ai que aborrecimento hoje, amanhã resolve-se.

HOJE. AQUI. PARO COM A PACIÊNCIA TODA.

Abaixo agora o protelar.
Abaixo hoje com o protelar tudo o que queremos ser depois.
Sejamos hoje e aqui.

A revolução vai começar? Isso era antigamente!
A revolução começa agora…

A REVOLUÇÃO JÁ COMEÇOU!

Protelariados do mundo uni-vos!
Protelariados do mundo extingui-vos!
Protelariados do mundo ESCREVAM AS VOSSAS MEMÓRIAS HOJE!

Sangue de tédio sabe-me a ouro. Esta hora. Todos os dias em que o degolo à mesa, sob a nespereira do meu jardim

sexta-feira, 3 de abril de 2009

ausência

De vez em quando todos sentimos uma sensação estranha de que falta qualquer coisa. Temos uma construção mental indefinida de algo que tem como maior semelhança o vácuo. Por vezes surgem-nos algumas coordenadas que, embora não o sejam, nos dão alguma noção de palpável.
Logo se desvanece essa noção quando temos uma pequena distracção e a única frase que a nossa parca linguagem nos permite construir é:
- Tenho a sensação de que me falta qualquer coisa.
Conquanto não seja nada de cientificamente comprovado, suponho que esta sensação de vácuo seja, comum a todos, no que diz respeito a objectos, ainda assim, relativamente a pessoas, acredito que seja mais raro, senão mesmo inexistente. Será que há mesmo alguém que diga:
- Tenho a sensação que me falta alguém.
Não me estou a referir a professores em visitas de estudo ou a rebanhos de amigos em noites de santos populares. Estou-me a referir a pessoas que fecham a porta de casa e pensam isso, que apertam os cordões dos sapatos e pensam isso, que colocam uma garfada de arroz na boca e pensam isso, que assoam o nariz e pensam isso.
Não tenho a veleidade de pensar que sou o único, mas duvido que este seja um sentimento comum a toda a humanidade.
Quando queremos referir algo indefinido somos simplificadores. As coisas que se escrevem no género feminino são coisas e as coisas que se escrevem no género masculino são coisos, logo a indefinição vem da linguística. As pessoas têm um nome, mas mesmo este tem momentos em que para os outros oscila entre coisa e coiso (com c maiúsculo) e apenas o nome não define alguém.
Quando falta alguém, o tal alguém indefinido, procuramos achar um nome, mas esse nome nem por isso preenche o vácuo.
Este vácuo, não o enquadro só ao contexto romântico do falta-me alguém para amar, ou da amizade do falta-me alguém para conversar. É um vácuo generalizado, que nos transmite apenas que na nossa vida nos falta alguém.
Quando há fogo falta-nos um bombeiro, quando há doenças agudas, um médico, quando há fé e crise, um padre. Mas e quando não há nada, nada de excepcional? Quando os dias correm na sua tonalidade cinzenta pintalgada de cores alegres? Quem é que nos falta?
Parece que estamos a jogar ao “Quem é quem?” viciado porque não sabemos o nome, nem o local semântico ao qual associar. Qual “Cavaleiro Inexistente” inexiste-nos em tudo excepto na sua apenas definível presença.
Poderia ser sufocante, mas não é, assim como provocar paranóia, mas não o faz. Pode até ser visto como positivo porque a ausência é sempre um factor que alimenta a esperança, esse bichinho cheio de apetite que funciona como motor.
Uma das vezes em que senti essa ausência foi num sonho. Estava algures numa cidade balnear e estava com quase toda agente que conheço e com quem costumo estar. Ia falando com este ou com aquela. A dada altura apercebemo-nos todos que em acontecimentos que recordávamos havia mais um de nós:
- Eu, o Artur, o Diogo e “ele” fomos ao café.
De nenhuma maneira conseguimos saber quem era ele. Não sabíamos o nome, apenas tínhamos a informação acerca do género (neste caso masculino), não sendo, apesar disso, possível defini-lo sequer como o Coiso. De resto tínhamos apenas a sensação de que preenchia os espaços em branco deixados, não pela nossa memória, mas por nós mesmos. Chegava-nos ao corpo a impressão de que “ele” tinha as características que todos tínhamos e todas as que gostaríamos de ter. Toda esta informação não nos permitia ser mais definidos porque as perspectivas que temos de nós próprios e das nossas expectativas varia entre cada um. Seria, talvez, uma “folie a deux” partilhada por todos. Não existia em nós a ideia bacoca de sermos todos e o nosso espírito de grupo, ou do um mais um igual a três, ou a ideia de deus, anjo ou demónio. Sabíamos que estava lá, só não sabíamos quem, nem como, nem porquê?
Apesar da confusão do sonho acordei bem-disposto e com as ideias organizadas. Não sou pessoa de acreditar no destino, intuição, premonição ou qualquer coisa parecida. Mas passei a acreditar que temos definitivamente espaços vazios que muito raramente se manifestam e ainda mais raramente se preenchem.
Lembrei-me ao acordar que conheci pessoas que vieram preencher esses espaços previamente manifestados. E normalmente só me apercebo disso quando o vácuo regressa com a oclusão dessas mesmas.