domingo, 24 de agosto de 2008

seis

Somos fantasmas. Corpo presente, mente ausente noutro qualquer lugar no espaço e tempo.
- Daqui a uns anos, meses, dias, semanas, minutos estarei noutro sítio!
Corpo presente, como nas últimas missas antes do funeral, a fervilhar várias espécies de bichos, que vão crescendo e nos consumindo, e nos transformam em sombras dos fantasmas que somos, ou nos alimentam a mente e transportam daqui para fora.
Opção B: - Traga o cá para fora cá para dentro! – O cansaço não o permite, mas por outro lado os fantasmas não se cansam.

cinco

Eu e eu sozinho com a dor da ausência em todos os sítios, praças, lugares, largos, pracetas, ruas, avenidas, parques de Braga. Eu farto do eu e comigo na mesma à espera de outro alguém em todos os sítios. Eu e eu e os sítios da cidade. Estou farto de Braga por minha causa, por estar farto de mim, por me imprimir a mim próprio a ausência, por Braga me imprimir essa ausência em mim que lhe imprimo a ela.
Sentado, em pé, encostado, deitado, encaixotado, encaixilhado, ajoelhado, plantado, enraizado, de cócoras, ao sol, à chuva (sempre à chuva), debaixo de uma varanda, de uma árvore, em cima de um banco, de um muro, de um arbusto, de uma bola de cotão, do chão, das nuvens, debaixo da lua, dos ratos voadores, dos lampiões, em cima da relva, dos lírios do jardim, do tecto, acordado, a dormir, ensonado, descansado, agitado, a sonhar, a fugir, a roer as unhas (eu nunca roo as unhas), a comer um gelado, a fumar, a comer um chupa-chupa, a mascar uma chiclete, a morder o tempo, a cuspir para o chão, a cuspir para o ar, a trincar a raiva, a esconder o medo, a queimar neurónios, a espirrar saudade, a tossir bocados de pulmão queimado, a escrever lixo numa folha, a desenhar folhas nas paredes, a esquematizar futuros irrealizáveis, a pensar em caminhos não traçados, a equacionar saídas fechadas, a remoer o café amargo do sabor a tédio, a voar no passado, a observar os outros (e a sua imensidão inalcançável), a perder-me de propósito (eu nunca me perco), a esperar, a esperar, a esperar, a esperar que chegue alguma coisa, a esperar que eu me vá embora, a esperar que Braga se vá embora.

tentativa errada

E se Braga fosse chuva nós seriamos gotas e cairíamos sem pára-quedas das nuvens enormes e negras que passassem no céu e cairíamos vários metros, quilómetros, a ver a Terra a aproximar-se (egocêntricos como sempre, pois nós é que nos aproximaríamos da Terra e esta é que nos olharia com uma curiosidade indiferente) cada vez mais e mais depressa. Depois esborrachar-nos-íamos no chão dividindo-se a nossa identidade pelos múltiplos quadrados do pavimento, segundo as múltiplas exigências destes (ou então mantínhamo-nos indivisíveis e unos e abandonados pelas outras gotas com medo de serem vistas connosco, e assim nós-únicas lentamente evaporar-nos-íamos de Braga para sempre). Depois caindo mais de nós iríamos formar um lago único, já sem diferenças, transparente, inodoro e inócuo, lago esse que começaria a mexer lentamente a bambolear, a escorrer pela rua abaixo, pela rua ao lado, pela rua acima, por todos os lados, não tão rapidamente como quando caíramos do céu, mas com uma cadência marcada, com uma cadência notória e vincada ao passar único do tempo existente para isso: o tempo que há. Depois dar-se-ia a entrada, tudo menos triunfal, na sarjeta, nas sarjetas, nos canos, no submundo da cidade, uma entrada pouco discreta mas irrelevante para o resto do mundo, uma entrada inevitável e lenitiva, a entrada nos canos onde se daria a união, o casamento, a fusão com o liquido suspeito e igualmente humano já presente nos esgotos, uma união simples de química básica, com quem mistura azeite com azeite ou água com água. Depois percorreríamos um caminho sinuoso e pastoso pelos labirintos enterrados em direcção ao nosso leito preferido de Braga, o rio Este, este rio Este que todos conhecemos e preferimos ignorar: o rio que há (como o tempo); aí a fusão seria de química avançada, plástica, um escorrer complexo para o rio e pelo rio. E depois no rio, e depois do rio todos sabemos, BragaNós escorreríamos daqui para fora, para o mar, para a imensidão de Não-Braga, com saudade da aventura e sem possibilidade, capacidade ou tendência para regressar, tirando os de nós que evaporassem e chovessem em Braga novamente.
E se Braga fosse chuva, choveria.
E se Braga fosse chuva, beberíamos, beberíamos Braga, beberíamo-nos, beberíamos.
E se Braga fosse chuva, Braga seria o que somos e o que é.
E se Braga não fosse chuva, não seria Braga.

quatro

Cada vez me cresce mais depressa o cabelo, as unhas e a barba. Será um aumento de células a morrer? Estou a morrer devagarinho, lentamente pela sombra, sem notar e sem me fazer notar.
Em Braga os cabelos, unhas e barbas dispensáveis proliferam: as células mortas da cidade. O melhor seria cortar tudo pela raiz. Depilação citadina a lazer - arrancar unhas com alicates. A tendência para acumular células inúteis é-nos comum. Não estou a falar de eugenismo. Falo da tendência para um descuido com o que poderia ser aproveitado, de uma tendência para deixar morrer, de uma tendência para deixar andar, de uma tendência parva para não reparar, não no sentido de notar, mas no sentido de concertar, rentabilizar, aproveitar. Esquecemos, eu e Braga, o que fazer quando morremos aos poucos.