quarta-feira, 28 de março de 2012

elipses


Sonhei esta noite que a tua casinha velha estava abandonada e reduzida metade do seu tamanho a armazém dos vizinhos. A mesma casinha com que tinha sonhado uns anos antes, aquela que ficava num largo de casinhas baixinhas para onde se entrava por debaixo do único prédio alto. Sonhei que desse prédio alto saiam senhoras, com os seus mochos, a cantar concertadas todas à mesma hora, sincronizadas com os animais. Depois saíam a voar pela janela, tanto as senhoras como os mochos, e só se tinha que ter cuidado com as bombas intestinais dos pássaros. E iam por outros túneis para outras ruelas e larguinhos.
Nesse largo havia ainda, mais ou menos do lado esquerdo, quem esta de frente para o corrente da tua casa velha, um portão velho e alto, fechado para as crianças não saírem no recreio; do outro lado do portão ficava África e fazia-me confusão as crianças não poderem ir lá.
No lado diametralmente oposto à casa ficava o cemitério fechado, viam-se umas campas velhas, com letras apagadas lá dentro. Ao dado esquerdo do portão ferrugento do cemitério estava, como sempre, o único apontamento histórico do largo, a janela gótica, baça e decadente como o tempo.
Quando sai do largo, depois de olhar para a tua velha casinha e me lembrar do que lá tínhamos passado fui a uma loja de brinquedos, peguei numa besta azul e vermelha e disparei a seta que estava engatada com uma rolha na ponta, depois de tirar a rolha. Vieram atrás de mim, mas não me apanharam porque os consegui enganar com um ardil de criança.
Sonhei com isto tudo e acordei triste por não te ter visto no sonho, por não te reconhecer senão na tua ausência presente.
Talvez daqui a uns meses regresse e a casa esteja de pé contigo lá dentro à minha espera como antes; os mochos usem mini fraldas para aves; o portão para África possa ser aberto finalmente; a janela recupere a sua glória; e a seta disparada pela besta consiga atingir o seu destino. Talvez me apanhem finalmente nesse sonho.

terça-feira, 13 de março de 2012

22, vinte e dois - ou a má disposição ou o bilhete só de ida



A triste cidade sai à rua todos os dias dentro de mim. Acorda bem cedo, pelas 6 da manhã para fazer as orações primeiras, ajoelhada contra as minhas costelas. Depois de se queixar de quão aborrecida é dirige-se lenta, em pé, comichosa num movimento repetido e autómato como se de ocupada se tratasse, revolve-me as entranhas estagna na estupidez da catatonia e sorri para o amarelo dos dentes do tempo e da partilha estapafúrdia do vácuo, provoca-me cólicas dolorosas. Regressa, desloca-se às orações do meio-dia, ora em pé ora em comunhão e vê de olhos fechados, causa-me prurido na pele, algum mas profundo.
Retorna sem gás ao automatismo e ao estupor desanimado, com ânsias de orar à bola, orar ao novelo de fios de merda, de orar ao caralho que a foda, sem sucesso, provoca-me um refluxo gástrico violento e violeta à boca. Enfim consegue libertar-se das amarras para se dedicar ao marasmo, sempre e sem excepção, consegue orar a metade do que planeou e satisfaz-se de barriga vazia por que sonhou ver luzes no meio do triste cinzento, porque pareceu-lhe sentir formas no plano cimento, porque lhe deu a impressão de ter ouvido música no ruído de esterco seco que lhe entrou nos ouvidos, porque com nada ou um misto de nada com o inútil lhe pareceu que orou o suficiente, a cidade, a mim fez-me vomitá-la.
De fora de mim engoliu-me porque eu sou uma besta e deixei.
Saio agora todos os dias pela triste cidade, triste a esmurrar-lhe as costelas, fazê-la estrebuchar, vomitar, ganhar pruridos... e ou acorda um dia da tristeza, ou me vomita de vez - para eu nunca mais a engolir.