quarta-feira, 23 de julho de 2008

três

Braga olha-nos de cima. Braga olha-nos com um ar reprovador porque não somos o que devíamos aparentar. Braga não é uma maçã, é um medo de esquecer e aparecer à noite escondida num canto que todos podem ver. E se estamos vestidos assim devíamos estar vestidos de outra forma e se nos vestimos de outra forma gozamos com os que se vestem assim e ninguém pode ser calmamente como é porque nunca é ou assim ou de outra forma totalmente e ambos os lados nos caem em cima.
Braga branca dos senhores, dos clérigos, da corrupção, das ciclovias, dos maiores espaços pedonais da Europa, dos jardins do Bom Jesus, dos Theatros Circos, dos estádios (culturais e de futebol), da história (com o seu peso bi-milenar), dos prédios enormes e feios e cheios de vazios, dos bairros sociais, das igrejas, do maravilhoso e não poluído rio Este, das praias fluviais no rio Cávado, dos trilhos na Geira, da devoção, das procissões, da Páscoa roxa, púrpura e violeta, das ruínas romanas, das bem escondidas ruínas humanas (parece sempre tão bem), dos túneis, dos viadutos, dos acessos, das rotundas, dos ecopontos, do Braga Cultural, dos shoppings e dos super, hiper, mini, mercados, stores, retails e afins. Braga como é. Braga para inglêsver. Braga para parecer Braga.
Braga negra das pessoas que vêm e que escolhem ver e que se deparam com pessoas que preferem não ver, outras que fazem por não ver, outras que fazem para ninguém ver e nenhuma que não veja realmente. E há as que dizem que ninguém faz nada e se refugiam na sua visão intelectual e pseudo-preocupada. E há as que fazem alguma coisa. E há as que querem esconder quem faça alguma coisa.
No fundo toda a gente gosta de Guimarães mas ninguém admite. Viva Braga.

dois

Então? Já tinhas vindo a Braga antes de te mudares para cá?
Vim. Quando era pequena. Quando não tinha decisões a tomar. O meu avô estudou cá no liceu Sá de Miranda. Fui ao Bom Jesus. Quando os meus pais passeavam. Os meus pais são de cá. Fui ao Sameiro. Vim ver o FCP uma vez. Tenho cá uma tia. O meu irmão estudou em Guimarães. Vim ver a Rampa da Falperra. Nunca tinha cá vindo. Vim mas não me lembro, era um sitio assim tipo coiso e tal. Apaixonei-me por uma bracarense.
E tu já saíste de Braga?
Já. Muitas vezes.
E voltaste porquê?
É casa? Não sei. Sou uma besta.

menos sete

Andar a pé faz bem e para quem bebe melhor (apanhar ar puro na cara, evitar acidentes e multas de carro, e mais uma quantidade de coisas que pelos vistos nem sempre compensam). O jardim da Senhora a Branca e as laranjeiras cheias de melões, daqueles pequenos e cor-de-laranja da família dos citrinos. A estátua de um senhor de nome Pio que deve ter feito alguma coisa, porque senão não tinha uma estátua com polegares nos quais de vez em quando espetam o dito fruto. Eu e ela relativamente ébrios pelos vodkas com sumos de todas as nações aos saltos e pinotes. Eu falo em francês quando atinjo determinado estado, ela fala em inglês com uma voz fininha e esganiçada. Há nuvens no céu, mas não chove. Saltamos arbustos e fazemos figuras que esquecemos com o tempo e que alguns fazem por esquecer pois passam a ser senhores e doutores e pessoas inseridas na bonita sociedade. E é uma alegria pertencer para alguns e os que eu conheço preferem sempre não pertencer, e eu prefiro sempre não pertencer e o futuro, a verdade, a chuva, as pessoas de Braga, Braga em si somos nós, estes que não lhe queremos pertencer. Os outros pertencem ao cinzento das paredes e ao imobilizado das estátuas. O paradoxo é inevitável, sofrido e doloroso. Quem disse que era fácil?

um e três quartos

Ora acordado e agoniado sem nada para fazer, como o costume, ou sem nada que me motive para fazer, levanto-me e depois de comprimidos e sumos e descanso sem dormir recupero. Nunca recupero. Ninguém recupera, mas alguns restabelecem-se. Eu não sou bem assim, prefiro manter o anonimato da minha dor de ausência, e assim ninguém me sente a falta. E eu digo obrigado.
Acordado e inevitavelmente estragado e estagnado saio de casa sem objectivo específico. Café na Brasileira, torradas no Vinil, livros na BLCS, bolos nas Frigideiras da Sé, um maço de tabaco aqui e ali. Chego ao fim do dia igualmente repleto de vazio. E sou mau, má pessoa, execrável como uma cobra de borracha cor-de-rosa enrolada no pescoço de um menino, porque as pessoas em Braga não são todas bracarenses! E se tivesse ficado em casa fartava-me de mim. E dos outros, como não estou sempre com eles, todo o dia, todos os dias, ininterrupta e fatalmente, como estou comigo, não me farto.

um e meio

É dia já, são seis e meia da manhã e o Insólito fechou. Ainda está aberto mas fechou. As portas estão abertas e estão pessoas do lado de fora e do lado de dentro destas. A música acabou. Não acabou propriamente, não cessou de existir no mundo nem na nossa memória matinal de peixe, mas para nós, hoje, acabou. Vamos comer porque a fome existe, o objectivo de tudo isto é originalmente igual a tudo o resto. Sabemos bem o que fazer quando há fome, não sabemos o que fazer quando não sabemos o que queremos. Raramente sabemos o que queremos e quando sabemos, coitadinhos de nós inocentes desarmados, não sabemos o que fazer com isso. O que é que Braga quer de nós não sabemos. Nós queremos, a maior parte das vezes, que Braga se foda. Vamos à Flor.

um

De manhã, acordei com uma dor de cabeça associada a uma dor de barriga monumental e a uma dor de ausência completa e peluda como as mãos do meu peluche urso vermelho de infância cor de chão. Os lençóis enrolados no edredão, eu enrolado em ambos, o cheiro a tabaco a emanar da roupa no chão e da barba, o sabor indefinido a seco e algo que definitivamente poderia ser melhor na boca, o latejar ritmado na cabeça a fazer lembrar que nunca ouvi nada assim e que preferia ficar na mesma ignorância, as cãibras nos dedos dos pés. Se calhar amanhecer até é bonito… mas acordar?
Ali no meio, nas pontas de bailarina da minha cama, sozinho, acordei a pensar em como devia dormir mais. Era isso o que devia fazer, dormir mais. Não pelo dever de ser humano para com o repouso, nem como um dever de saldo a uma determinada entidade que o controlava, mas por dever a mim mesmo um não pensar desconexo durante o sono em vez de um sonhar desconexo acordado que tanto me preenche o cansaço. Mas a agonia dolorosa dos ais não me permitiu cumprir esse épico dever, logo acordei definitivamente. Até ao momento.