domingo, 27 de janeiro de 2013

OHQLCURNC 4.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se imediatamente e começou a ver a vida dela andar para trás. Mesmo a andar para trás. No verdadeiro sentido da palavra, literalmente, levantou-se e começou a andar para trás e a desfazer tudo o que tinha feito. E com consciência disso. “Pensava que eu não tinha feito nada” – dizia para consigo a par que ia subindo e descendo elevadores, apagando documentos escritos, desconhecendo pessoas e o seu mais despreferido: desfodendo. Aparentemente o descoito é uma experiência mesmo entristecedora. Desamou pelo caminho e foi encolhendo e perdendo conhecimentos. Acabou no ventre materno a perder células até se desmembrar em duas e perder a consciência.

domingo, 20 de janeiro de 2013

OHQLCURNC 3.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Não se levantou imediatamente. Acordou um dia depois no mesmo sítio com uma estranheza no corpo. Não uma estranheza física por alguma mazela causada pelo raio, mas uma estranheza interior, sentida profundamente. Levantou-se e continuou a caminhar sem saber para onde. Ia identificando devagarinho o que sentia. Era uma espécie de vazio, de quem está à espera. Sentiu-se expectante. Mas não sabia de quê. Já tinha sentido isto mais vezes, à espera de um autocarro, de um evento ou de alguém. Só que desta vez não tinha nada combinado. Mas esperava saber o que estava à espera.
Andou assim durante dias até que reparou que algo de incomum se passava. Na verdade tinha levado com um raio na cabeça e sobrevivido, o que por si só já não é normal. A espera mantinha-se dentro dele e tinha-lhe toldado os sentidos. Durante esse tempo passado não tinha estado com ninguém. Tinha estado sempre sozinho. Saiu à rua e verificou que não havia ninguém. Começou a perceber que o que esperava era encontrar alguém. 
Fixou-se nesse objectivo e andou por todo o lado em todo o mundo procurando, mas mais especialmente esperando encontrar alguém. 
De toda esta solidão por várias vezes decidiu acabar com tudo. Mas o seu sentido de moral não lho permitia – enfim, tinha sobrevivido a um raio na cabeça no mesmo momento em que todos deixaram de existir, seria uma afronta não se considerar o mais miserável dos afortunados. 
A unicidade não lhe agradava e partir de certa altura passou a esperar apenas que tudo acabasse. Viveu mais que Matusalém, sempre, sempre expectante. Depois apagou-se, como um raio que cai e apaga a luz num quarteirão, só que não foi apenas num quarteirão, foi em todo o lado para sempre. Apagou-se a espera, a esperança e tudo.

domingo, 13 de janeiro de 2013

OHQLCURNC 2.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Não se levantou imediatamente até porque levou com outro. E em seguida com outro. Quando a chuva de raios parou conseguiram levá-lo para o hospital. Apesar de tudo estava incólume. Depois deste episódio e alguma atenção mediática, o homem que levou com vários raios na cabeça continuou com a sua vida normal… até à próxima tempestade: levou com mais cinco raios na cabeça. Não sofreu nada. Passaram a chamar-lhe Pára-raios. Não gostava da alcunha e continuava a acreditar que era apenas um infeliz acaso. Nunca se tinha passado nada de anormal antes do primeiro raio. Na terceira tempestade nem quis sair de casa, mas ao espreitar na janela… outro raio! Efectivamente o homem que levou com um raio na cabeça passou a ter a capacidade para atrair todos os raios. Ficou a ser domínio público e embora pudesse ser utilizado como pára-raios, a tecnologia existente permitiu-lhe não ser necessário e esconder-se sempre que os trovões andassem no ar. Alguns chamavam-lhe Zeus, ele gostava mais do que Pára-raios, no entanto entristecia-se na mesma por não poder controlar nada. De resto tinha uma vida banal.

domingo, 6 de janeiro de 2013

OHQLCURNC 1.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Não ficou morto, mas um peso no peito da sua mãe surgiu de repente. Estava a mil e quinhentos quilómetros de distância. Mesmo assim sentiu. O homem levantou-se a seguir. Vieram a ajudá-lo e levaram-no para o hospital onde uma panóplia de análises foi realizada. Aparentemente tudo estava bem.
E estava. O homem que levou com um raio na cabeça ganhou no entanto uma estranha competência. Sentia um formigueiro nos dedos sempre que ouvia música. Já tinha mexido em instrumentos mas não sabia tocar nenhum. Começou a olhar para uma harmónica que tinha em casa, e viu, conseguiu ver mesmo a musica a ser reproduzida nesta. Toda a música que tinha ouvido até então. Pegou na harmónica, cheia de pó, ex-bibelot, e deu-lhe uma razão de ser. Tocou até os vizinhos lhe tocarem à campainha a ameaçar com a polícia. Depressa procurou outros instrumentos e descobriu que sabia tocar tudo o que tinha ouvido até então em todos, ressalvas feitas às incapacidades de cada um. Tocou desde melódica até sítara, passando pela bateria e pela tuba. Era incrível. Ganhou fama como o homem que levou com um raio na cabeça e sabia tocar todos os instrumentos do mundo. Qualquer um que lhe trouxessem, qualquer música que lhe pedissem, desde que o deixassem ouvir antes.
Mas, existe sempre um mas, houve um dia em que lhe pediram inocentemente para tocar algo dele. Começou por tentar algo que desembocou numa obra que os ouvintes desconheciam mas ele sabia que não era dele. Tentou uma segunda vez, uma terceira e uma quarta, sempre a reproduzir. Parou a récita ali e foi para casa preocupado.
Depois de semanas a tentar o homem que levou com um raio na cabeça percebeu que não tinha a capacidade de criar algo novo. Era o mais exímio a reproduzir, melhor que os melhores que treinaram toda a vida, mas não tinha a capacidade de criar nem a menor melodia de todas.
Pesou as escolhas: perante as pressões ou contava o segredo a todos, ou apenas a alguns que criassem para ele. Poderia manter a sua ecolalia mas sem ninguém saber. No entanto homem que levou com um raio na cabeça não conseguia viver na mentira e assumiu perante todos o seu psitacismo. Houve defensores e detractores da sua causa. Uns diziam que era o maior flop de sempre, os outros defendiam que muitos grandes interpretes ao longo da história nunca tinham composto. Foi perdendo o interesse do grande público e os seus quinze minutos de fama esbateram-se trocados por um miúdo que sabia todas as distâncias do mundo.
Ainda assim continuou a trabalhar em vários locais como músico em concertos decentes e em freak shows. No entanto sempre que havia tempestades saia à rua com a esperança de levar com outro raio na cabeça – um que lhe desse a capacidade de criar, ainda que lhe retirasse a de reproduzir.