terça-feira, 31 de dezembro de 2013

OHQLCURNC 52 FIM.

O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Morreu. 
Fim.

OHQLCURNC 51.

O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Durante um ano, todas as semanas aconteceu-lhe a mesma coisa. Um raio na cabeça. Ninguém mais reparava, o homem sentia-se confuso a início, desesperado um pouco depois, resignado por fim. Na verdade caía e levantava-se sempre. Tirando o choque de levar com o raio, pouco mais o afectava. Quando na primeira semana, passado um ano, não levou com o raio, estranhou a situação. Na segunda e terceira sorriu aliviado, mas ainda com receio. Com o tempo reparou que lhe às vezes até tinha saudades. Ainda assim, esqueceu, como se esquecem todas aquelas coisas… 

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

OHQLCURNC 50.

O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se depressa e foi a correr para casa porque se lembrou de que tinha deixado a torradeira ligada. “Deixar a torradeira ligada é um perigo” – pensou o homem. 

OHQLCURNC 49.

Passaram doze semanas desde que tinha feito o implante metálico na cabeça. Quando ia a caminhar pela rua, pensou se não seria perigoso por atrair raios. Passou os anos seguintes com medo. Até que um dia chuvoso, subindo rapidamente a rua, se deparou com um homem que ia à sua frente, a levar com um raio na cabeça. Perplexo foi ajudá-lo. O homem levantou-se e estava bem. Nunca mais temeu as tempestades. Morreu de velhice num dia de sol.

domingo, 29 de dezembro de 2013

OHQLCURNC 48.

O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Ao cair fez um barulho de silêncio. Causou mais espanto ainda quando se levantou, de pescoço erguido, como uma tartaruga que se estica ao sol, e começou a cantar com a mais bela voz do universo. Diga-se de passagem que até povos alienígenas acorreram ao local onde o homem cantava. Não cantava em nenhuma língua específica, no entanto era uma língua reconhecida por todos. Nunca mais saiu do sítio onde caiu quando levou com o raio. Uma peregrinação ao local instalou-se para o ver cantar, e toda a gente lhe levava coisas para, quando pausava um pouco, comer e beber. Filólogos tentaram decifrar a língua, musicólogos procuraram reconhecer a melodia, os alienígenas trouxeram a sua tecnologia avançada para ajudar a esclarecer estas dúvidas. Com o passar do tempo nada se esclareceu. Passou a ser conhecido como o homem do raio que cantava o silêncio. O silêncio que fez ao cair, o silêncio que todos faziam para o ouvir. 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

OHQLCURNC 47.

O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se devagar ainda meio atordoado e continuou o seu caminho ainda sem perceber bem o que lhe tinha acontecido. Pelo caminho foi ouvindo um choro, baixinho, quase surdo. Depois outro, e mais um a seguir. Pensou para si que ainda estava confuso. No dia seguinte continuou a ouvir choros por todo o lado, sem ver ninguém a chorar. Olhava em volta e só via as pessoas a andar na rua alienadas nos seus botões, umas mesmo a rir de banalidades em companhia, outras a trabalhar normalmente. O homem que levou com um raio na cabeça não sabia o que se estava a passar, de onde vinham os choros.
Com o tempo foi-se habituando e quase que podia jurar para si próprio que conseguia identificar de onde vinham os tristes lamentos, os gemidos de dor. Mas não batia certo, nada batia certo.
Concluiu, passado meses, que conseguia ouvir as pessoas chorar por dentro. A senhora do balcão do quiosque com ar de tédio, a namorada acanhada do casal no jardim, o rapaz de phones nos ouvidos na passadeira, o idoso no banco da avenida, o talhante, o alfaiate, a taxista, a florista. As crianças normalmente eram as mais sossegadas e quando choravam toda a gente ouvia. O coveiro também estava sempre silencioso.
Um dia pelo caminho perguntou ao jardineiro: “O que é que se passa? Posso ajudar?”

E o jardineiro estourou em lágrimas. E o mundo inteiro a seguir estourou em lágrimas. Todos os choros que o homem ouvia foram externalizados no espaço de minutos. Os oceanos subiram o nível e só os cumes das montanhas se mantiveram à tona. Em silêncio, em cima dos cumes das montanhas, sentados a olhar o horizonte, ficaram as crianças e o coveiro.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

OHQLCURNC 46.

Nesse dia havia no ar uma desconfiança que pairava sobre a cabeça dos habitantes da aldeia. Um mau prenúncio. A tia Arminda encostada ao beiral da sua porta espreitava o cimo da rua enquanto que com uma mão puxava os pelos do bigode. A telefonia estava, excepcionalmente nesse dia, cheia de interferências. Do outro lado da rua a tia Florinda respirava fundo à janela, desviando o olhar para a tia Arminda. Trocavam umas palavras:
- Viste o jogo ontem minha puta?
- Vi. O raio do moço nem para varrer o chão. Quem lhe disse era um bom jogador de Curling devia estar a dormir.
O tio Patinhas estava ilustrado na capa do caderno do Gertrudino que vinha a descer a rua:
- Olá tia Arminda. Boas tia Florinda. Como estão minhas vacas?
- Eu estou bem – disse a tia Arminda a coçar a barba – Estive a fazer a janta mas este ar de desconfiança aqui no ar está-me a incomodar.
- És uma incomodadinha! - retorquiu a tia Florinda – Que andas a fazer Gertrudino? Não tens que ir treinar para a final da fórmula 1?
- Tenho mas...
De repente caiu um raio na cabeça de um homem que vinha a subir a rua da aldeia. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se meio a andar ao tombos e em vez de continuar a subir a rua, voltou a descê-la.
- Este raios estão-me sempre a interromper. Raios! - indignou-se Gertrudino.
- Esquece lá isso moço. Vamos todos à tia Perpétua almoçar texugo no espeto.

Deram os três as mãos e desceram a rua rumo ao texugo de Perpétua, famoso pelos quatro cantos da aldeia.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

OHQLCURNC 45.

O homem ia a caminhar rapidamente pela rua acima e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se completamente atordoado e foi logo contar a toda a gente – espalhar aos quatro ventos, meter a boca no trombone, espalhar aos três trombonistas e soprar ventanias com a sua história. Fez correr sangue nas veias dos escritores de notícias e dos jornalistas também. Apareceu na televisão e fez alguns anúncios de rádio e aparições no cinema. Só que não era verdade. O homem não levou com raio nenhum na cabeça. Era mentira, um falso testemunho. Mas o narcisismo do homem não o permitia acreditar noutra verdade que não a sua própria mentira. Até ao dia em que se olhou ao espelho e a verdade lhe piscou o olho : “Não levaste com raio nenhum, sabes bem!”. Virou-lhe as costas e inventou que agora via o futuro nos espelhos, fruto do raio que o atingira.

Acabou a vida enrolado na mentira que criara para si próprio, mergulhado no seu próprio reflexo.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

OHQLCURNC 44.

O homem ia a caminhar rapidamente pela rua e levou com um raio na cabeça. Transformou-se em nada – não ficou invisível ou se desfez em pó – transformou-se em nada. As pessoas ao olhar para o local do estrondo nada viam e o homem nada sentia, nem consciência do raio tinha, nem do que tinha sido, nem do que era agora: nada.

Nessa semana não se passou mais nada na vida do homem, nem nada aconteceu na sua restante vida. Não se sabe quando é que esta deixou de existir por não haver provas de nada.

domingo, 24 de novembro de 2013

OHQLCURNC 43.

O homem ia a caminhar calmamente e levou com um raio na cabeça. Sentiu uma comichão, sacudiu o pó dos ombros e continuou pelo rio de lava e cobras demoníacas de oito cabeças acima como se de um Domingo de manhã se tratasse – mas não, era uma Terça-Feira de tarde!

domingo, 10 de novembro de 2013

OHQLCURNC 42.

O homem ia a caminhar rapidamente pela rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se completamente careca e com uma estranha azia. Depois de tossir violentamente vomitou uma enorme bola de pêlo…

…Ai que já estou a ver onde é que isto vai dar… o homem transformou-se num gato. Daqueles sem pêlo. Mas se é daqueles sem pêlo, como é que tinha uma bola de pêlo? Será que os gatos sem pêlo têm o mesmo hábito dos gatos peludos de se lamberem para se lavarem? Ou lambem os outros?... Tenho que ver isso na net…. CTRL-T… O que é que eu ia fazer? Ah! “Gatos Carecas” Enter. Imagens. Olha este! Vou partilhar. Que feioso coitadinho. Ora o que é que se estará a passar no facebook…


O homem levantou-se meio confuso. Tirou uma selfie e postou em todo o lado: Levei com um raio na cabeça #leveicomumraionacebeçaefiqueisempêloevomiteiumaboladepêloseráquemeestouatransformarnumgatodaquelescarecasdeixamepesquisar.

sábado, 19 de outubro de 2013

OHQLCURNC 41.

O Homem ia a caminhar no mundo e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. O desenho darwiniano sofreu um acrescento castiço que daria belas t-shirts. No entanto não sobrou ninguém para as usar.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

OHQLCURNC 40.

O homem ia a caminhar rapidamente pela rua acima e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se zangado e fumegar. No entanto note-se que o senhor não se encontrava a fumegar por ter levado com um raio, mas sim por estar profundamente zangado com tudo no mundo. Uma zanga tão profunda que o levava a destilar ódio por todos os poros. Parecia filho de uma panela de pressão. Ainda deu um chuto numa pedra, mas em vez de acalmar ficou a sentir-se pior e mais odioso. Começou a ganhar uma cor escarlate e, fumegando cada vez mais, acabou por explodir. O pasmo das pessoas na rua foi geral, principalmente das que levaram com pedaços do homem em cima. Eles, os que coiso, disseram que foram os terroristas de não sei onde por causa do medo e do ódio religiopoliticosocialculturaloqualquercoiso. Marotos mentirosos.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

OHQLCURNC 39.

O homem ia a caminhar rapidamente pela rua acima e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se cheio de si, profundamente iluminado acerca de todas as ideias. Sorriu com soberba perante os transeuntes. No fundo sentia-se o maior. Partilhava as suas ideias e lançava as suas farpas pelos meios que possuía. Havia sempre alguma reposta que lhe reforçava o comportamento, no entanto a proporção do reforço era desproporcionada à reposta que dava. Coisas do umbigo. No final não havia ninguém que o seguisse. Ecoava no vazio. Mas nunca deixou de se sentir como o homem que levou com um raio na cabeça, continuando a bradar.


domingo, 13 de outubro de 2013

OHQLCURNC 38.

Havia no céu um prenúncio de tempestade. O sol estava oculto atrás das nuvens zangadas que discutiam entre si. Secundina, a nuvem mais balofa e irascível de todas zurzia com argumentos mirabolantes e impropérios faustosos a sua colega Castorina. De tanta barafunda a segunda, não de nome, mas de ordem de evocação no texto, saiu derrotada e com uma raiva crescente dentro dela. Quando estava a flutuar em direcção a casa sozinha fartou-se e olhando para baixo escolheu um homem que ia a subir a rua muito rapidamente. Zás! Acertou-lhe com um raio na cabeça. Ficou um pouco mais aliviada, mas quanto a Secundina, esta ainda iria ouvir muitas e boas da boca dela. 

domingo, 15 de setembro de 2013

OHQLCURNC 37.

O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. O chão por sua vez sentiu-se deveras magoado. Isto tanto fisicamente, por causa do peso e da forma violenta como foi atingido, como emocionalmente porque nunca esperava que o homem lhe fizesse isso, nem levando com um raio na cabeça.
Foi uma surpresa muito desagradável para o chão que chorou um bocadinho todos os dias durante alguns meses até suprimir o trauma com outros passeios. Mesmo assim nunca mais foi o mesmo.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

OHQLCURNC 36.

O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Perdeu totalmente a vergonha. Despiu-se por completo e começou a passear nu pela cidade, a rebolar pela relva e a refrescar-se nas fontes. Deixou de querer controlar o que dizia, como se de uma criança se tratasse: “Ahah! Aquela senhora tem bigode!!”. “Aquele senhor coxo anda esquisito”. “Olá, estou profundamente apaixonado por ti, desde que te vi a primeira vez” – disse ele para a menina da caixa registadora enquanto coçava o escroto e sorria sinceramente. Vieram pouco depois apanhá-lo e levaram-no para uma instituição. Dizia sempre “Não sou eu que sou louco”. 

OHQLCURNC 35.

O homem ia a caminhar rapidamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Ficou cheio de vergonha e nunca mais saiu do buraco que se formou no chão. Passou a beber água que escorria pelas paredes e a comer uma dieta de insectos e ocasionais raízes atrevidas. Fez uma espécie de tampa para o buraco com a roupa para ninguém espreitar. A sua actividade mais comum era contar as gotas de suor que lhe caiam da testa devido à ansiedade.
Entretanto a câmara mandou alcatroar o buraco e o homem que levou com um raio na cabeça por lá ficou a comer bicharada e a beber água lamacenta.
Passados mil anos, arqueólogos do futuro escavaram o buraco e foram lá encontrá-lo. Foi nesse momento que o homem colapsou de vergonha por estar exposto à humanidade de novo.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

OHQLCURNC 34.

O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Ao cair abriu-se-lhe a mala, de onde saltaram um número interminável (para o comum mortal) de notas de todas a cores – do cinzento ao violeta passando pelo amarelo, laranja, azul, rosa, e verde – que se espalharam quase que uniformemente à volta do buraco criado pelo raio onde se encontrava deitado. Quem via de cima tinha uma imagem única e estimulante às papilas gustativas do olhar – parecia uma flor psicadélica repleta de pétalas coloridas e com um homem farrusco no meio. Passou por lá, momentos breves depois, uma mulher que apanhou a flor e a levou ao nariz. Cheirava-lhe um pouco a chamuscado mas mesmo assim não a deitou fora e colocou-a no cabelo cheio de frescos caracóis. Quando chegou à praia não se lembrou mais da flor e ao dar o primeiro mergulho nas ondas do mar imenso, perdeu-a para sempre.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

OHQLCURNC 33.

O homem ia a caminhar rapidamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. À volta começara a surgir sorrisos e esgares de esperança. Quem levou com o raio não era um homem qualquer mas o homem mais vil da aldeia. Dizia-se por aí que batia na própria mãe e que a enviou para um lar no estrangeiro só para ela não poder ser compreendida; diziam que quando via gatinhos bebés os apanhava logo para se divertir a atirá-los aos porcos que os comiam; diziam que já tinha atropelado doze pessoas só por estarem alguns centímetros fora da passadeira; diziam que era sempre mal educado, tratando toda a gente como seu subordinado; diziam muitas coisas.
Foi com regozijo que a população abraçou aquele raio naquela cabeça daquele homem. Mas, o drama, o horror, o homem levantou-se. Estava tudo bem. Toda a gente virou a cara e cerrou o punho pela injustiça. O homem começou a rir às gargalhadas enquanto saltava em cima de um formigueiro.

Pois é. O povo nem sempre fica quieto, logo em uníssono deram-lhe com um pau na cabeça. Desta vez de forma fatal. O povo ficou calado a seguir. Culparam o raio e seguiram o seu caminho.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

OHQLCURNC 32.

O homem ia a caminhar afincadamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Ficou lá um buraco. Pelos vistos alguém não gostava das ideias dele e esse alguém, como não gostava de sujar as mãos, mandou outro alguém acertar-lhe com um raio fulminante. Com o tempo parece que as pessoas, algumas muitas pessoas apenas, se esqueceram desse atentado e do quão pouco respeito pelas ideias diferentes da sua tinha esse mandatário, e assim ergueram-lhe uma estátua. Se calhar ninguém se esqueceu mesmo, mas fecharam os olhos às malandrices dos atentados para o elogiar por outras coisas várias. Desviaram o olhar como se de negligentes profissionais se tratassem. Na verdade o homem lá se levantou a custo do buraco de onde levou com o raio e continuou a caminhar. Se fosse do mesmo tipo de pessoa ainda encomendava um raio para cair em cima da estátua do outro. 

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

OHQLCURNC 31.

O homem ia a caminhar rapidamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se revoltado com a vida. Mas que raio, cair-lhe logo a ele um raio na cabeça. Ainda por cima quando tinha coisas a fazer e não ao fim do dia quando se diz que já está tudo feito. (Como se ficasse tudo feito alguma vez). Desceu a rua a resmungar e foi a casa trocar a roupa chamuscada. Ao todo “perdeu” meia hora do seu tempo com o acontecimento e com isso ficou revoltadíssimo em vez de aproveitar a singularidade que lhe tinha sido propiciada experienciar. Voltou à rotina e no dia seguinte já tinha tudo dentro da sua ordem. Não levou com mais nenhum raio. Revoltou-se com outras banalidades apenas.

terça-feira, 30 de julho de 2013

OHQLCURNC 30.

O homem entrou de férias, saiu da rotina e atrasou o tempo. Não alterou a hora do relógio, colocou o tempo a andar mais devagar, fora dos parâmetros de espaço definidos pela média. Ia a subir pela rua acima, em plena pastelice veraneante quando uns cem metros à sua frente caiu um raio no chão. Pensou na sorte que teve e em como se estivesse na aceleração diária talvez o raio lhe tivesse acertado mesmo em cheio na cabeça. Passou ao lado pelo buraco e seguiu em modo slow motion.

terça-feira, 23 de julho de 2013

26, vinte e seis, XXVI, aniversário, mudanças

Hoje acordei bem disposto, mas pela última vez nesta casa. Vou ali e já venho. Quando voltar, dentro de uma semana, já não será para aqui. A nossa memória visual embrenha-nos os locais no DNA e o seu abandono deixa sempre alguma melancolia. 
Havia uma casa em cima do rio (não é esta da qual me despeço hoje), com a qual sonho recorrentemente, cheia de infâncias e sabores e uma braga pequenina. Veio uma vaga mais forte e arrancou-a das suas fundações. Como um barco a casa do rio passou a ser a casa barco e foi desaguar na imensidão do mar. Levou consigo as infâncias os sabores e a braga pequenina. Ficamos nós todos para a relatar. Fica sempre algo de nós para relatar alguma coisa...

segunda-feira, 22 de julho de 2013

OHQLCURNC 29.

O homem deitou-se na cama cansado, com dores de costas. Sonhou que a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Em seguida caiu como um peso morto no chão. Acordou atordoado, como se com o raio tivesse levado mesmo. Na verdade não se levantou por causa da dor que o debilitava. Rebolou para fora da cama e arrastou-se até aos comprimidos e à água. Quando conseguiu manter-se de pé saiu de casa e dirigiu-se aos seus afazeres. Pelo caminho levou com um raio na cabeça. Acordou uns dias depois numa cama, desta feita curado das dores que tinha. Já nem cansado estava.

domingo, 14 de julho de 2013

OHQLCURNC 28.

Iam os dois de mão dada, a subir a rua, em acesa discussão.
- É azul!
- É amarelo!
- É azul!
- É amarelo! Com mil raios!
- É azul! Rais’ te parta mais a tua teimosia.

E um raio caiu-lhe em cima da cabeça partindo-lhe a teimosia. A partir daí concordou que afinal era azul.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

OHQLCURNC 27.

O homem ia a andar calmamente na praia e de repente levou com um raio de sol na cabeça. Apenas um. Efectivamente acontece normalmente ser um homem atingido por mais ao mesmo tempo, mas não neste caso. Não caiu no chão, mas o calor do raio na cabeça fê-lo sentir-se quentinho e confortável completamente vazio de ideias frescas. A ignorância e a inércia são uma bênção, como a nossa cama aconchegada num dia de relampejar lá fora. 

domingo, 30 de junho de 2013

OHQLCURNC 26.

O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se confuso sem saber onde estava. Na verdade nunca mais soube onde foi parar. A princípio custou-lhe percorrer os labirintos locais e relacionais, a forma como se organizavam as ruas e como se comportava a sociedade onde estava. Sentia-se um alien perdido. Com o tempo foi derrubando uns muros e abrindo caminho. Tinha a esperança de regressar, nem que fosse com um raio na cabeça de novo, mas no sitio onde foi parar só fazia sol, todos os dias. Acabou os seus dias relativamente deslocado a olhar para trás, mas resignado com o seu caminho.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

25, vinte e cinco (de abril sempre?) - Simon Says Run

Tive uma ideia genial para dinamizar a cidade de Braga. 
Tem que ver com corridas e objectivos vagos e vagamente relacionados com alegria e tal. Simon Says Run”, assim em inglês para exportar o conceito, como todos os conceitos que são exportados, e porque “o rei manda” soa um bocado mal, tanto foneticamente como ideologicamente. E o que soa parece e mais vale ser sem parecer do que parecer e soar.
Grupos de mais do que um, unidos a correr, mas de forma imitadora: todos atrás do mesmo. O grupo maior a imitar só um na corrida, o rebanho mais unido, a massa popular mais uniforme e indistinta, esse ganha. 
O prémio é uma parte que depois se vê para uma associação que depois se vê e umas medalhas para as ovelhas mais lãzudas sob comando do senhor simão. É óbvio que a criatividade também é premiada com menções em duas linhas de comunicação social – mas na verdade imitar criatividade é sempre mais difícil do que emular o do costume e como tal já se sabe, o maior grupo será o menos confuso e inovador. O grupo que sempre vence. 
A corrida deverá percorrer a cidade toda, e a sua história recente, como tal, a partida será na rotunda do Santos da Cunha e acabar perto do largo de monte de arcos na futura rotunda do Cónego de Melo. 

domingo, 23 de junho de 2013

OHQLCURNC 25.

O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Passado uns segundos levantou-se num salto para de novo cair. Na verdade levar com um raio na cabeça não é coisa que não deixe mazelas. Não teve lesões excepto no controlo dos braços, que perdeu, e na cabeça que começou a inchar e a ganhar um tom luzidio e brilhante. Demorou uns tempos a conseguir equilibrar a cabeçorra que tinha agora, ainda mais sem o auxílio dos braços, no entanto aprendeu que se estivesse em constante movimento e andasse à roda, à roda, à roda… Ganhou algum reconhecimento e passou a ter emprego garantido na animação de todas as festas populares. Tinha especial jeito para dançar músicas de bombos e concertinas e gaitas de foles e ferrinhos, especialmente ferrinhos.

domingo, 16 de junho de 2013

OHQLCURNC 24.

Há momentos chave na vida de uma pessoa. O momento em que começamos a usar frases chavões é um deles sem dúvida. Mas não é desse que venho aqui falar. Um dia destes ia eu na rua muito descansado a pensar que o verão nunca mais chegava e como estava farto de chuva e (inserir onomatopeia mais adequada), levei com um raio na cabeça. Confesso que não pensei em nada. Nem tempo para isso tive… nem para pensar nem para me doer. Não sei quanto tempo depois acordei relativamente confuso, mas ao mesmo tempo com a sensação de que tinha tudo organizado na minha cabeça. Hoje sei que foi uma espécie de reset ou formatação de disco, mas sem me apagar a memória. Ainda esperei ganhar algum super-poder, mas o máximo que identifiquei foi mesmo o de sobreviver a um raio. A comunicação social ainda por cima diminuiu-me o poder referindo que era um raio pequenino e só por isso me safei. Ainda me fizeram um bolo desses da moda com bonecos com um mini eu a levar com um relâmpago. Estava bom. Pode-se dizer que a minha vida mudou mas ficou na mesma. Mudou tanto como quando comecei a usar frases chavão.

domingo, 9 de junho de 2013

OHQLCURNC 23.

O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se transformado numa folha de papel. Passou a escrever a vida nele em vez de a viver.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

OHQLCURNC 22.

Acordou com o despertador às sete e trinta. Ouviu a chuva lá fora enquanto reparava que tinha a boca seca. Levantou-se calçou umas meias, vestiu a camisa e as calças e colocou os suspensórios. Abriu a janela e entrou o escuro da ainda noite. Foi à casa de banho urinar e lavar os dentes – a pasta tinha acabado. Ao passar pela cozinha pequena e amarelada bebeu um resto de café frio da cafeteira. Vestiu o casaco, pegou num guarda-chuva velho, nas chaves e saiu. Desceu as escadas estreitas e desembocando na rua dirigiu-se ao quiosque para comprar tabaco. Começou a subir a rua no meio de uma tempestade, enquanto fumava o primeiro cigarro do dia. Mal disposto porque o cigarro estava molhado distraiu-se e com um sopro do vento mais forte o guarda-chuva dobrou-se ao contrário e voou-lhe das mãos. Continuou a subir a rua apressado para não se molhar. E de repente levou com um raio na cabeça… 

segunda-feira, 27 de maio de 2013

OHQLCURNC 21.

O homem ia a caminhar muito devagar pela rua acima e levou com um raio na cabeça. Caiu redondo no chão. Mas assim redondinho como um pião a rodar sobre as costas. No meio das tonturas e chamuscaduras levantou-se devagar confuso com a sua identidade. Esticou o pescoço ao sol como uma tartaruga. Deu um salto ninja a piscar o olho à infância e foi-se embora para casa, dentro de si mesmo.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

24, vinte e quatro ou gamaru, ou o dia mundial da tartaruga

Venho por este meio felicitar publicamente a minha tartaruga, Gamaru de seu nome, neste dia tão importante para a sua tartarugagem para si e para as suas comparsas encarapaçadas. 
Tenho inevitavelmente que destacar o facto de esta ter sido um pilar importante no caos da minha vida  desde que a encontramos no parque na rua atrás do bragaparque há sete ou oito anos. 
Uma contribuição incomensurável para a minha sanidade mental com a sua incansável capacidade de ouvir e os seus sábios conselhos ditos apenas na hora certa. 



(Eu sei que ela não é muito de ler blogues - coisa do século passado é o que diz - mas eu leio-lhe porque como sempre não estou sozinho, está cá ela à minha beira) 

domingo, 19 de maio de 2013

OHQLCURNC 20.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Não caiu. Ficou meio atordoado e sentiu um pequeno incómodo, daqueles incómodos que sentimos quando nos lembramos que poderíamos ter dito uma determinada frase numa inócua conversa da semana passada, conversa essa da qual nunca mais nos vamos lembrar passado o incómodo. Sacudiu-se para ver se o incómodo lhe passava e sacudiu a fuligem de ter levado com o raio. A fuligem saiu, o pequeno incómodo não. Não cresceu, nem diminuiu, não se tornou o centro da sua vida mas também nunca mais desapareceu. Morreu muito anos depois num acidente com uma estrutura que desabou por, numa tempestade, ter levado com um raio em cima.

domingo, 12 de maio de 2013

OHQLCURNC 19.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Incompreensivelmente conseguiu levantar-se antes de se transformar numa estátua de sal, roupas e tudo, mas sempre consciente. Vinham os gatos das redondezas lambê-lo, o que o deixavam com cócegas. Os gatos por sua vez faziam caretas felinas como quem não está profundamente agradado. As pombas foram-no bicando, iam caindo mortas passado um pouco o que levou a que passado um pouco já nenhuma o fizesse e se mantivessem afastadas. Houve flores que lhe nasceram aos pés. Flores muito feias e malcheirosas com picos em vez de pétalas. Umas cabras com pelo de palha de aço passavam lá a comê-las e em dez passagem pestiscaram-lhe os dedos dos pés também. Até que um dia vinha um búfalo a descer a montanha e tropeçou na rua por sobre a estátua - cornos enfiados no peito. O homem que virou estátua de sal quase chorou com a dor do coração perfurado mas só a chuva que caiu a seguir e lhe desfez os pedaços restantes conseguiu simular esse acto. 

domingo, 5 de maio de 2013

OHQLCURNC 18.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se. Toda a gente no mundo se levantou do sofá e bateu palmas. Que incrível façanha! Desde que o homem que ia a descer a rua apressadamente e foi mordido por um urso que não se via nada de tão espectacular.  Depois de dez minutos de palmas a humanidade voltou a sentar-se à espera que mais alguma coisa acontecesse. 

domingo, 28 de abril de 2013

OHQLCURNC 17


O homem acabava de parar um momento na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se cansado, como se tivesse corrido duas maratonas. Não que se lembrasse de alguma vez ter corrido duas maratonas, mas pareceu-lhe que se sentiria assim. Como tal, meio chamuscado, foi-se sentar na beira do passeio para tentar descansar. Tirou uma garrafa de água que tinha no bolso do casaco para dar um gole, no entanto a garrafa estava completamente derretida e a água evaporada. Perdeu-se uns minutos a pensar onde estaria a água e caiu para ao lado.
Acordou alguns dias depois numa cama. Olhou em volta e pensou que era a de um hospital. Mas não era. Estava num palácio enorme sem divisões ou andares – de apenas uma divisão portanto. Um palácio estúdio. A cama bem no meio. De lá conseguia ver a forma interior do palácio, as janelas enormes, os torreões, os pináculos, todos os pormenores que se costumam ver da parte de fora mas em negativo. Levantou-se a perguntar-se como é que tinha ido ali parar.
Como se sentia melhor dirigiu-se à porta e ao abri-la caíram-lhe em cima cinquenta mililitros certos de água. Depois de passado o susto, até se sentiu bem. À porta do palácio não viu nada que reconhecesse. Apenas uma estrada que parecia não ter fim.
Decidiu seguir por essa estrada e mal deu a segunda passada a estrada começou a ruir atrás dele. Assustado começou a correr para não cair junto com a estrada. Correu oitenta quilómetros até parar o desabamento da estrada. Parou um momento mas antes de conseguir pensar em mais alguma coisa, levou com um raio na cabeça…

domingo, 21 de abril de 2013

OHQLCURNC 16


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Transformou-se num cravo… de plástico. Mesmo assim murchou e secou. Foi sendo pisado até ficar em pó, em nada.

domingo, 14 de abril de 2013

OHQLCURNC 15


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se com uma sensação estranha de que era eu. Não sei se estão a ver qual é? Eu pelo menos acordo todos os dias assim… e a maior parte deles vou dormir sem me livrar dela.
Foi isso que passou a acontecer todos os dias ao homem que levou com o raio na cabeça. No início fazia-lhe confusão não se sentir como ele próprio, mas como eu. Apesar de todas as idiossincrasias que ser eu acarreta, o homem conseguiu adaptar-se. Ainda teve fases em que se meteu no álcool e nas drogas pesadas; fugiu em viagens termináveis mas longas; passou pelas religiões todas de joelhos em pé ou de pernas cruzadas. Tudo para ver se esquecia a sensação mas o resultado era muito momentâneo e por vezes com sequelas desagradáveis.
A dada altura resignou-se e deixou de lutar contra mim próprio, ou a sensação de mim próprio melhor dizendo... E a partir daí as coisas começaram a correr bem.
Um dia destes faço como ele!

domingo, 7 de abril de 2013

OHQLCURNC 14.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Veio logo uma ambulância buscá-lo. No meio da viagem foi acordando e ouviu umas frases suspeitas: Foi uma falha técnica; O sistema mediu mal as coordenadas; Não era suposto isto ter acontecido; Vamos ser todos despedidos se ele não aguenta.
Acordou ao fim da tarde na cama do hospital rodeado de familiares com um ar aliviado. Sentiu-se reconfortado mas uma frase de um primo deixou-o com a pulga atrás da orelha: Continua a festa.
Recuperou e continuou a sua vida normalmente. No entanto foi ruminando desde início o que tinha ouvido. Passou a acreditar que algo se passava. Que era especial e de alguma forma vigiado. Que a vida dele fazia depender dele todas as pessoas no mundo. Sentiu-se um messias, mas ao mesmo tempo, a sua tendência para a introversão não lhe permitia partilhar nenhuma destas ideias com ninguém.
Manteve neste limbo. Com a crença de que estava a ser constantemente vigiado passou a não fazer determinadas coisas que fazia antes: cantar no banho, falar sozinho, masturbar-se, escarafunchar o nariz, observar os poios que libertava ao mundo, olhar para os decotes e pernas que deambulavam pela sua frente, e mais todas essas coisas que tu fazes mas não queres que ninguém saiba.
Poucos meses depois entrou num convento (embora não tenha encontrado a fé no deus dos seus parceiros de mosteiro, a sua fé na vigia que tudo sabe levou-o a esta opção) e viveu uma vida de monge silencioso até ao fim dos seus dias. 

domingo, 31 de março de 2013

OHQLCURNC 13.


O homem ia a caminhar calmamente na rua, com um saco de biscoitos boa nova na mão esquerda, e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Ficou em coma durante três dias, tendo acordado em excelentes condições a meio do terceiro. Toda a gente achou curiosa a história do portador da boa nova e houve mesmo quem aproveitasse a oportunidade para fazer negócio: começaram a produzir e vender uns pequenos raios de colocar ao peito, raios para colocar na parede a enfeitar e mesmo raios com íman para colocar no automóvel. Foi uma moda intensa mas não durou muito mais que um par de milhares de dias.

domingo, 24 de março de 2013

OHQLCURNC 12.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se atordoado com uma sensação de afastamento da realidade. Na verdade, não reparou logo, mas desde que se levantou nunca mais tocou no chão. Começou por flutuar dois ou três milímetros. No dia seguinte reparou já estar dois centímetros afastado do chão. Com o esforço de quem mergulha ainda conseguia sentir a Terra, mas nem por isso se mantinha preso a ela como antes.
Os médicos começaram a elaborar teorias como sempre, mas não havia nenhuma explicação aceitável. Passado um mês o homem que levou com um raio na cabeça já andava a um metro e meio do chão. Várias soluções foram procuradas, como atá-lo a uma cadeira, ou colocar bolas de chumbo atadas às pernas. Tal como o mergulho no início funcionava, mas depois voltava à tona… e sem qualquer dificuldade ou dor flutuava com os pesos agarrados a ele.
O que a princípio o confundia e preocupava, depressa lhe passou a parecer normal e banal. Dormia colado ao tecto e depois por cima do telhado da sua casa. Concluiu consigo mesmo que estava a rejeitar o planeta. Não lhe era uma ideia nova, já antes de levar com o raio essas ideias lhe tinham cruzado o pensamento.
A partir dos dezoito metros de afastamento a atenção das outras pessoas começou a esmorecer. Foi ficando abandonado pelo ar. Ia caminhando como se o fizesse pelas nuvens. Aos sete meses tinha saído da atmosfera da Terra. Sentiu-se grande comparado com o gigante azul à sua frente. Num ano já se encontrava fora do sistema solar. Em dois anos fora da galáxia. Até que parou.
Parou num ponto neutro e afastado de forma igual de todos os outros pontos do universo. A partir daí esboçou um sorriso que ninguém viu, mas que nunca mais lhe saiu da cara. Começou a atrair poeira cósmica e outros pedaços de matéria flutuante que passavam por perto. Até que á sua volta se formou um enorme cometa. Quando já tinha o tamanho da lua o homem decidiu-se e arrancou a toda a velocidade de volta à Terra…

segunda-feira, 18 de março de 2013

OHQLCURNC 11.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. De forma imediata transformou-se numa poça de muco. Uma poça de muco que não era uma qualquer. Uma poça de muco translúcida, tanto por ser transparente como por ser para lá de lúcida: omnisciente. Mesmo muito omnisciente. Tanto que sabe perfeitamente que neste momento estás a ler esta frase. E o que fizeste antes e o que vais fazer mais logo.
Ou então não era propriamente omnisciente porque lhe faltava saber uma coisa. De qualquer forma sabia que no parágrafo anterior eu iria aplicar o adjectivo erroneamente. E o que não sabia era como comunicar tudo o que sabia aos transeuntes. 
A única forma de transmitir algo era fazendo bolhinhas – bloop bloop. E assim o fez quarenta e duas vezes. 
As pessoas só acharam aquela visão bastante nojenta e no dia seguinte veio uma máquina da câmara municipal limpar a poça de muco que estava no meio da rua.

domingo, 10 de março de 2013

OHQLCURNC 10.


O homem ia a caminhar acelerado pela rua acima e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se devagar… em câmara lenta como nos filmes. Do chão quente elevava-se algum vapor, ou melhor, fumo que fazia lembrar vapor. Sentiu-se estranho, mas magnifica. O homem que levou com um raio na cabeça reparou então que tinha algo no peito. Colocou as mãos e constatou que tinha agora seios, dois voluptuosos e frescos seios. No meio do espanto perdeu algum tempo a apalpá-los. Lembrou-se então de um pormenor, desceu uma mão e depressa se convenceu do que tinha passado. 
Era agora uma mulher (e não, não se chamava Orlando). Decidiu continuar acelerada no sentido contrário para onde ia, rua abaixo. Entrou em casa e depois de acalmar a primeira coisa que se apercebeu foi que que podia ter filhos. Antes também podia, mas agora podia criar vida dentro dela. É verdade que ia receber menos dinheiro no trabalho (são factos, as mulheres em média recebem menos ordenado que os homens), mas a mudança provocada pelo raio desenhou-se-lhe risonha. Em meia hora para além da aparência física, o homem que levou com um raio na cabeça era uma mulher feita também em toda a forma de pensar e sentir e ser.   
E na verdade durante o resto da sua vida foi uma excelente mulher, daquelas mesmo excelentes, como as nossas mães e avós e irmãs e namoradas e primas e tias e amigas.

domingo, 3 de março de 2013

OHQLCURNC 9.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se metamorfoseado em uma arma de fogo. Não se deixou ir abaixo com isso. Aproveitou na mesma e disparou até ao último dos cartuchos que tinha.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

OHQLCURNC 8.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se, ou melhor, levantaram-se três homens iguais… quase iguais. Três partes do mesmo homem. Entreolharam-se durante um momento e depois viraram costas.
Um dirigiu-se para Norte. Ajudou uma idosa a atravessar a rua e um invisual a apanhar o autocarro. Seguiu uma vida de boas acções, esteve em organizações não-governamentais e lutou pelos direitos humanos, dos animais, contra a fome e contra a pobreza. Foi admirado por todos os que o conheciam e o seu trabalho teve impacto sobre um grande número de pessoas. Não se tornou famoso, mas foi feliz assim.
Outro foi para Oeste, e pregou imediatamente uma rasteira a um coxo e roubou o telemóvel a duas crianças. Durante a sua vida enganou quem pode, roubou sempre que teve oportunidade, manipulou, maltratou, bateu e cuspiu sempre que possível. Subiu a um cargo qualquer de respeito na sociedade que lhe permitiu uma melhor exploração desta. Só quem o não conhecia verdadeiramente podia ter uma boa opinião dele. Os restantes não o gramavam mas tinham-lhe medo. A sua índole de tendência para a atrocidade retraia os opositores. Obviamente ficou famoso, com direito a estátua e nome de rua, e foi, com isso, muito feliz.
O terceiro homem não se mexeu. Ficou inerte e com uma expressão vazia no rosto. Passou toda a sua vida no mesmo local. Embora não transparecesse, interiormente pensava indeciso nas opções que tinha pela frente e decidia-se constantemente que nenhuma valia a pena. As pessoas reconheciam-no como o homem parado no mesmo local. Não se pode dizer que tenha sido feliz, mas infeliz também não aparentava ser. Por dentro sentia apenas que era, por fora não parecia ser nada.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

OHQLCURNC 7.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se com o peso da responsabilidade do mundo nas costas. Pai de mil filhos, órfão de mil pais. Não teve medo. Olhou em frente e seguiu. Ninguém reparou… ninguém nunca repara nestas coisas.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

OHQLCURNC 6.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se devagar, com um cheiro a farrusco a entrar-lhe pelas narinas e uma sensação estranha de animação. Sentia-se vivo e colorido. Olhou para o seu reflexo numa montra de uma loja de electrodomésticos e verificou que efectivamente estava com o cabelo no ar e a cara toda encarvoada, no entanto todo restante corpo brilhava de vivacidade. Sacudiu e cabeça e, ao mesmo tempo que se ouviu um ruído de todos nós conhecido, ficou imediatamente penteado e composto, depois de uma nuvem de pó preto assentar. O homem tinha-se transformado num desenho animado – a cores! O espanto dele foi de um a naturalidade inerente a este tipo de personagens, ainda assim o mesmo não se pode dizer dos transeuntes que pelo local passavam.
Como qualquer desenho animado que se preze o homem começou a planar no ar, ao mesmo tempo que os pés começaram a descrever uma roda com uma nuvenzinha branca. Daí pisgou-se a toda a velocidade para casa para ver a família.
Como é óbvio nunca mais o deixaram em paz. Afinal era o primeiro desenho animado vivo, como nos filmes, mas em vida real. Capaz do impossível! Apesar de não conseguir ser omnipresente conseguiu, com a simplicidade dos desenhos animados, resolver várias questões mundiais, sendo considerado um herói.
A esposa divorciou-se por causa as suas características peculiares, no entanto pretendentes não lhe faltaram. Ele tendencialmente desprezava as que pretendiam parecer a Jessica Rabit e procurava entre as mais sinceras. Os filhos admiraram-no sempre, mas a partir de certa idade deixaram de o levar a sério.
Com o tempo reparou na sua imortalidade, embora não perdesse nunca a sua actualidade. Inicialmente temia as borrachas, correctores e outro tipo de abrasivos e tintas, mas foi nestes que passados muitos milhares de anos de animação, encontrou a sua redenção. No fundo nunca mais ninguém o viu, ainda assim ninguém sabe precisar se efectivamente deixou de existir.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

OHQLCURNC 5.


O homem ia a caminhar rapidamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se muito lentamente com um zumbido crescente na cabeça. As pessoas foram-se aproximando e o homem só ouvia um barulho que identificava como white noise, mas um white noise diferente, com gradações, como se fosse houvesse um emissor mais próximo e outro mais longe, ou mil emissores mais próximos e mil emissores mais longe. Não conseguia ouvir nada do que lhe diziam, nem no local, nem depois no hospital. Percebeu que os médicos o percebiam e também conseguiu, compreender, sem ouvir, quando lhe diziam que a sua audição estava normal aparentemente. Não tinha tido nenhuma alteração física com o raio que lhe caiu na cabeça. O homem ficou muito pouco descansado porque em nenhum momento o ruído parou.
Passou os tempos seguintes assim… depois de uma semana de insónia reparou num pormenor – de facto quando tapava os ouvidos ouvia menos. O ruído afinal parecia vir de fora de si e não de um mal funcionamento interno qualquer. Passou a dormir com vários tipos de abafadores de som acumulados, desde os internos bocados de silicone até abafadores industriais. Conseguiu alguma paz, no entanto não conseguia nunca ouvir as pessoas.
Com o passar dos meses foi aprendendo linguagem gestual para poder ultrapassar a sua surdez induzida, pois muito raramente tirava os abafadores. Mesmo assim, às vezes, quando estava sozinho à janela fazia-o para tentar escrutinar o que escutava.
Que ruído em camadas era aquele, que vinha de longe e vinha de perto? Um amigo romântico sugeriu-lhe que ele ouvia as estrelas. Explorou esta ideia em algumas entrevistas que deu e chegou mesmo a ser contactado por especialistas. Ainda assim sem grande crença na coisa. Outra teoria que alguns defendiam referia que podia ter sido um raio divino a acertar-lhe e como tal, o homem que levou com um raio na cabeça, ouvia os anjos nos céus a cantar. Nesta descria completamente.
Passaram-se anos e o público esqueceu a história. Os mais próximos já tinham parado de inventar razões. Os vizinhos só conheciam o homem por ser o homem que tinha abafadores na cabeça. O homem apesar de nunca ter soçobrado ao desespero e ter levado uma vida normal do incidente em diante, nunca esqueceu a sua condição de ouvinte de um algo especial.
Nunca descobriu que o que ouvia eram todas as folhas a cair, todas de todas as árvores, todo o tipo de árvores e plantas que têm folhas que caem, em todo o mundo, todo o dia, toda a noite, todas as folhas, as de perto, na mesma rua e as de longe, no outro lado do planeta. O som das folhas a cair. 

domingo, 27 de janeiro de 2013

OHQLCURNC 4.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se imediatamente e começou a ver a vida dela andar para trás. Mesmo a andar para trás. No verdadeiro sentido da palavra, literalmente, levantou-se e começou a andar para trás e a desfazer tudo o que tinha feito. E com consciência disso. “Pensava que eu não tinha feito nada” – dizia para consigo a par que ia subindo e descendo elevadores, apagando documentos escritos, desconhecendo pessoas e o seu mais despreferido: desfodendo. Aparentemente o descoito é uma experiência mesmo entristecedora. Desamou pelo caminho e foi encolhendo e perdendo conhecimentos. Acabou no ventre materno a perder células até se desmembrar em duas e perder a consciência.

domingo, 20 de janeiro de 2013

OHQLCURNC 3.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Não se levantou imediatamente. Acordou um dia depois no mesmo sítio com uma estranheza no corpo. Não uma estranheza física por alguma mazela causada pelo raio, mas uma estranheza interior, sentida profundamente. Levantou-se e continuou a caminhar sem saber para onde. Ia identificando devagarinho o que sentia. Era uma espécie de vazio, de quem está à espera. Sentiu-se expectante. Mas não sabia de quê. Já tinha sentido isto mais vezes, à espera de um autocarro, de um evento ou de alguém. Só que desta vez não tinha nada combinado. Mas esperava saber o que estava à espera.
Andou assim durante dias até que reparou que algo de incomum se passava. Na verdade tinha levado com um raio na cabeça e sobrevivido, o que por si só já não é normal. A espera mantinha-se dentro dele e tinha-lhe toldado os sentidos. Durante esse tempo passado não tinha estado com ninguém. Tinha estado sempre sozinho. Saiu à rua e verificou que não havia ninguém. Começou a perceber que o que esperava era encontrar alguém. 
Fixou-se nesse objectivo e andou por todo o lado em todo o mundo procurando, mas mais especialmente esperando encontrar alguém. 
De toda esta solidão por várias vezes decidiu acabar com tudo. Mas o seu sentido de moral não lho permitia – enfim, tinha sobrevivido a um raio na cabeça no mesmo momento em que todos deixaram de existir, seria uma afronta não se considerar o mais miserável dos afortunados. 
A unicidade não lhe agradava e partir de certa altura passou a esperar apenas que tudo acabasse. Viveu mais que Matusalém, sempre, sempre expectante. Depois apagou-se, como um raio que cai e apaga a luz num quarteirão, só que não foi apenas num quarteirão, foi em todo o lado para sempre. Apagou-se a espera, a esperança e tudo.

domingo, 13 de janeiro de 2013

OHQLCURNC 2.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Não se levantou imediatamente até porque levou com outro. E em seguida com outro. Quando a chuva de raios parou conseguiram levá-lo para o hospital. Apesar de tudo estava incólume. Depois deste episódio e alguma atenção mediática, o homem que levou com vários raios na cabeça continuou com a sua vida normal… até à próxima tempestade: levou com mais cinco raios na cabeça. Não sofreu nada. Passaram a chamar-lhe Pára-raios. Não gostava da alcunha e continuava a acreditar que era apenas um infeliz acaso. Nunca se tinha passado nada de anormal antes do primeiro raio. Na terceira tempestade nem quis sair de casa, mas ao espreitar na janela… outro raio! Efectivamente o homem que levou com um raio na cabeça passou a ter a capacidade para atrair todos os raios. Ficou a ser domínio público e embora pudesse ser utilizado como pára-raios, a tecnologia existente permitiu-lhe não ser necessário e esconder-se sempre que os trovões andassem no ar. Alguns chamavam-lhe Zeus, ele gostava mais do que Pára-raios, no entanto entristecia-se na mesma por não poder controlar nada. De resto tinha uma vida banal.

domingo, 6 de janeiro de 2013

OHQLCURNC 1.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Não ficou morto, mas um peso no peito da sua mãe surgiu de repente. Estava a mil e quinhentos quilómetros de distância. Mesmo assim sentiu. O homem levantou-se a seguir. Vieram a ajudá-lo e levaram-no para o hospital onde uma panóplia de análises foi realizada. Aparentemente tudo estava bem.
E estava. O homem que levou com um raio na cabeça ganhou no entanto uma estranha competência. Sentia um formigueiro nos dedos sempre que ouvia música. Já tinha mexido em instrumentos mas não sabia tocar nenhum. Começou a olhar para uma harmónica que tinha em casa, e viu, conseguiu ver mesmo a musica a ser reproduzida nesta. Toda a música que tinha ouvido até então. Pegou na harmónica, cheia de pó, ex-bibelot, e deu-lhe uma razão de ser. Tocou até os vizinhos lhe tocarem à campainha a ameaçar com a polícia. Depressa procurou outros instrumentos e descobriu que sabia tocar tudo o que tinha ouvido até então em todos, ressalvas feitas às incapacidades de cada um. Tocou desde melódica até sítara, passando pela bateria e pela tuba. Era incrível. Ganhou fama como o homem que levou com um raio na cabeça e sabia tocar todos os instrumentos do mundo. Qualquer um que lhe trouxessem, qualquer música que lhe pedissem, desde que o deixassem ouvir antes.
Mas, existe sempre um mas, houve um dia em que lhe pediram inocentemente para tocar algo dele. Começou por tentar algo que desembocou numa obra que os ouvintes desconheciam mas ele sabia que não era dele. Tentou uma segunda vez, uma terceira e uma quarta, sempre a reproduzir. Parou a récita ali e foi para casa preocupado.
Depois de semanas a tentar o homem que levou com um raio na cabeça percebeu que não tinha a capacidade de criar algo novo. Era o mais exímio a reproduzir, melhor que os melhores que treinaram toda a vida, mas não tinha a capacidade de criar nem a menor melodia de todas.
Pesou as escolhas: perante as pressões ou contava o segredo a todos, ou apenas a alguns que criassem para ele. Poderia manter a sua ecolalia mas sem ninguém saber. No entanto homem que levou com um raio na cabeça não conseguia viver na mentira e assumiu perante todos o seu psitacismo. Houve defensores e detractores da sua causa. Uns diziam que era o maior flop de sempre, os outros defendiam que muitos grandes interpretes ao longo da história nunca tinham composto. Foi perdendo o interesse do grande público e os seus quinze minutos de fama esbateram-se trocados por um miúdo que sabia todas as distâncias do mundo.
Ainda assim continuou a trabalhar em vários locais como músico em concertos decentes e em freak shows. No entanto sempre que havia tempestades saia à rua com a esperança de levar com outro raio na cabeça – um que lhe desse a capacidade de criar, ainda que lhe retirasse a de reproduzir.