domingo, 24 de fevereiro de 2013

OHQLCURNC 8.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se, ou melhor, levantaram-se três homens iguais… quase iguais. Três partes do mesmo homem. Entreolharam-se durante um momento e depois viraram costas.
Um dirigiu-se para Norte. Ajudou uma idosa a atravessar a rua e um invisual a apanhar o autocarro. Seguiu uma vida de boas acções, esteve em organizações não-governamentais e lutou pelos direitos humanos, dos animais, contra a fome e contra a pobreza. Foi admirado por todos os que o conheciam e o seu trabalho teve impacto sobre um grande número de pessoas. Não se tornou famoso, mas foi feliz assim.
Outro foi para Oeste, e pregou imediatamente uma rasteira a um coxo e roubou o telemóvel a duas crianças. Durante a sua vida enganou quem pode, roubou sempre que teve oportunidade, manipulou, maltratou, bateu e cuspiu sempre que possível. Subiu a um cargo qualquer de respeito na sociedade que lhe permitiu uma melhor exploração desta. Só quem o não conhecia verdadeiramente podia ter uma boa opinião dele. Os restantes não o gramavam mas tinham-lhe medo. A sua índole de tendência para a atrocidade retraia os opositores. Obviamente ficou famoso, com direito a estátua e nome de rua, e foi, com isso, muito feliz.
O terceiro homem não se mexeu. Ficou inerte e com uma expressão vazia no rosto. Passou toda a sua vida no mesmo local. Embora não transparecesse, interiormente pensava indeciso nas opções que tinha pela frente e decidia-se constantemente que nenhuma valia a pena. As pessoas reconheciam-no como o homem parado no mesmo local. Não se pode dizer que tenha sido feliz, mas infeliz também não aparentava ser. Por dentro sentia apenas que era, por fora não parecia ser nada.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

OHQLCURNC 7.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se com o peso da responsabilidade do mundo nas costas. Pai de mil filhos, órfão de mil pais. Não teve medo. Olhou em frente e seguiu. Ninguém reparou… ninguém nunca repara nestas coisas.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

OHQLCURNC 6.


O homem ia a caminhar calmamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se devagar, com um cheiro a farrusco a entrar-lhe pelas narinas e uma sensação estranha de animação. Sentia-se vivo e colorido. Olhou para o seu reflexo numa montra de uma loja de electrodomésticos e verificou que efectivamente estava com o cabelo no ar e a cara toda encarvoada, no entanto todo restante corpo brilhava de vivacidade. Sacudiu e cabeça e, ao mesmo tempo que se ouviu um ruído de todos nós conhecido, ficou imediatamente penteado e composto, depois de uma nuvem de pó preto assentar. O homem tinha-se transformado num desenho animado – a cores! O espanto dele foi de um a naturalidade inerente a este tipo de personagens, ainda assim o mesmo não se pode dizer dos transeuntes que pelo local passavam.
Como qualquer desenho animado que se preze o homem começou a planar no ar, ao mesmo tempo que os pés começaram a descrever uma roda com uma nuvenzinha branca. Daí pisgou-se a toda a velocidade para casa para ver a família.
Como é óbvio nunca mais o deixaram em paz. Afinal era o primeiro desenho animado vivo, como nos filmes, mas em vida real. Capaz do impossível! Apesar de não conseguir ser omnipresente conseguiu, com a simplicidade dos desenhos animados, resolver várias questões mundiais, sendo considerado um herói.
A esposa divorciou-se por causa as suas características peculiares, no entanto pretendentes não lhe faltaram. Ele tendencialmente desprezava as que pretendiam parecer a Jessica Rabit e procurava entre as mais sinceras. Os filhos admiraram-no sempre, mas a partir de certa idade deixaram de o levar a sério.
Com o tempo reparou na sua imortalidade, embora não perdesse nunca a sua actualidade. Inicialmente temia as borrachas, correctores e outro tipo de abrasivos e tintas, mas foi nestes que passados muitos milhares de anos de animação, encontrou a sua redenção. No fundo nunca mais ninguém o viu, ainda assim ninguém sabe precisar se efectivamente deixou de existir.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

OHQLCURNC 5.


O homem ia a caminhar rapidamente na rua e levou com um raio na cabeça. Caiu como um peso morto no chão. Levantou-se muito lentamente com um zumbido crescente na cabeça. As pessoas foram-se aproximando e o homem só ouvia um barulho que identificava como white noise, mas um white noise diferente, com gradações, como se fosse houvesse um emissor mais próximo e outro mais longe, ou mil emissores mais próximos e mil emissores mais longe. Não conseguia ouvir nada do que lhe diziam, nem no local, nem depois no hospital. Percebeu que os médicos o percebiam e também conseguiu, compreender, sem ouvir, quando lhe diziam que a sua audição estava normal aparentemente. Não tinha tido nenhuma alteração física com o raio que lhe caiu na cabeça. O homem ficou muito pouco descansado porque em nenhum momento o ruído parou.
Passou os tempos seguintes assim… depois de uma semana de insónia reparou num pormenor – de facto quando tapava os ouvidos ouvia menos. O ruído afinal parecia vir de fora de si e não de um mal funcionamento interno qualquer. Passou a dormir com vários tipos de abafadores de som acumulados, desde os internos bocados de silicone até abafadores industriais. Conseguiu alguma paz, no entanto não conseguia nunca ouvir as pessoas.
Com o passar dos meses foi aprendendo linguagem gestual para poder ultrapassar a sua surdez induzida, pois muito raramente tirava os abafadores. Mesmo assim, às vezes, quando estava sozinho à janela fazia-o para tentar escrutinar o que escutava.
Que ruído em camadas era aquele, que vinha de longe e vinha de perto? Um amigo romântico sugeriu-lhe que ele ouvia as estrelas. Explorou esta ideia em algumas entrevistas que deu e chegou mesmo a ser contactado por especialistas. Ainda assim sem grande crença na coisa. Outra teoria que alguns defendiam referia que podia ter sido um raio divino a acertar-lhe e como tal, o homem que levou com um raio na cabeça, ouvia os anjos nos céus a cantar. Nesta descria completamente.
Passaram-se anos e o público esqueceu a história. Os mais próximos já tinham parado de inventar razões. Os vizinhos só conheciam o homem por ser o homem que tinha abafadores na cabeça. O homem apesar de nunca ter soçobrado ao desespero e ter levado uma vida normal do incidente em diante, nunca esqueceu a sua condição de ouvinte de um algo especial.
Nunca descobriu que o que ouvia eram todas as folhas a cair, todas de todas as árvores, todo o tipo de árvores e plantas que têm folhas que caem, em todo o mundo, todo o dia, toda a noite, todas as folhas, as de perto, na mesma rua e as de longe, no outro lado do planeta. O som das folhas a cair.