sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Como sempre


Tinha um bocado de vento nos meus olhos. Tentei soprá-lo mas só consegui piorar a situação. Grave portanto. Com isto encaminhei-me às apalpadelas à procura da saída. Fui contra um vidro lambido e senti-me mais patético do que o costume. Depois de alguns desvios intuitivos que me restauraram a confiança caí, caí como se num abismo me afundasse, durante horas de aflição e desassossego. Coração na boca, pulmões vazios, cabeça a andar à roda. Toda esta inquietude secou-me até às lágrimas, conseguindo assim limpar o vento nos meus olhos. Vi novamente, constatei onde estava. Levantei-me estóico, peito feito e orgulho redobrado pela sobrevivência, e saí com os olhos no fogo, lá fora, à minha frente. À minha espera.

sábado, 19 de novembro de 2011

nulo

Os acontecimentos desta vez foram completamente ímpares sendo que não há memória na história de algo desta magnitude. Apenas há mais de um século os números se aproximaram dos de hoje. Várias testemunhas relatam o quão impressionante foi. Houve mesmo uma delas que pormenorizou as graves consequências directamente relacionadas com a situação descrita. Infelizmente não foi a única e apesar de ainda não estarem completamente contabilizados os estragos, facilmente afirmamos que nunca nada foi visto como hoje. O tempo para recuperar todos estes prejuízos será muito longo e necessitará de todas as ajudas possíveis. Especialistas de várias áreas já se dirigiram para o local tendo-se distribuídos por várias zonas ajudando e recolhendo informações para perceber melhor a raiz da situação e definindo caminhos para tentar colmatar as falhas por esta levantada.
Repetimos, nunca nada foi visto assim.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

alínea b)

Eu tenho medo
Tu tens menos
Eu tenho pé
Tu tens fé
Eu revolto
Tu regressas
Nós explodimos
Eles excluem
Eu tenho chão
Tu não
Eu excedo
Tu recuas
Nós doemos
Eles lambem-nos
inferiores
doces
cadentes
como saltos de pulgas
Vocês não conseguem

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

vinte e um, 21, XXI

Houve uma das “Cidades Invisíveis” (Italo Calvino) que me ficou especialmente na retina. Posso não me lembrar com a melhor acuidade, mas do que me lembro era uma cidade que estava “rachada” a meio apresentando duas faces completamente distintas: uma com prédios de betão e pessoas comuns e a outra com tendas de circo e os seus respectivos artistas e roulottes e jaulas de animais e restante parafernália. Sazonalmente a cidade mudava e uma das partes seguia viagem. Se fosse outro qualquer seria obviamente a metade do circo a levantar tenda e partir, no entanto o Sr. Calvino descreve um levantamento de todas as paredes e muros de cimento e tijolo e a sua partida, restando o referido circo!
E agora? O que é que fazemos com isto na mão? Fica o circo e parte a cidade?
A língua portuguesa tem uma particularidade (da qual me orgulho) que permite melhor análise a este tipo de questões. A diferença entre os verbos ser e estar. O italiano, só tem o verbo essere o que significa que nem o autor pôde ver as coisas desta forma tão clara.
A cidade de betão estava, a cidade do circo era.
Passa-se o mesmo por estas terras de Bracara Augusta. As coisas que estão podem-se mudar de sítio, as coisas que são vão ser os motores da mudança (por coisas entendam-se pessoas, grupos, marcas históricas). Posso regressar, mais uma vez, ao paralelismo da Braga Branca e da Braga Negra, mas nem tudo (ou nada mesmo) é bidimensional. Para além de que dentro de cada coloração existem circos e edifícios, podemos assumir outros paradigmas de percepção e tentar perceber o problema existente na inexistente simbiose entre a cidade centro, marca e história e a instituição superior de ensino, máquina de fazer bonecos, que apesar do desvio de meio grau, foi por cá plantada.
Existe uma redoma que fecha a freguesia universitária que nem a geira milenar consegue aproximar. Problema identificado: o ilustre instituto educativo das terras do Minho está em Braga, não é em Braga!
Soluções?

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Obrigado Gordon

Gordon, já anteriormente laureado com agradecimentos, fez sempre por parecer ser bom. Poucos, como eu, reconhecem a sua incapacidade para tal, destacando-o sempre que possível.
Gordon, esse gordo nódulo de pus virulento residente no ânus estragado de uma hiena leprosa, quase ajudou uma família, quase concluiu os estudos, quase alimentou um pobre mendigo na rua, quase salvou a humanidade da desgraça e perdição. Mas não.
O que Gordon conseguiu foi ter o seu nome em vários jornais, vários filhos varões, várias aberturas de telejornal, vários programas prime time e não em várias, mas em todas as listas de agradecimento. Todas. Sempre: “Obrigado Gordon!”
Gordon esse inútil pedaço de esterco vomitado pelas entranhas apodrecidas de um abutre, por todos bajulado, apenas conseguiu ser famoso à custa da sua mediocridade.
Gordon até a falecer foi medíocre, tendo falhado redondamente várias vezes até à fatalidade final mais falada do mundo ter mesmo acontecido. E, mais uma vez, todos fizeram questão de lhe agradecer pelo que quase fez. Eu não. Mas aproveito agora para o fazer pela primeira vez. Obrigado Gordon… por teres morrido!

sábado, 20 de agosto de 2011

vinte, 20

Existe um bicho farfalhudo dentro da cidade, bem no coração desta, a espalhar raízes por toda a parte em quase todas as pessoas!
Será alarmante?
É um bicho que consome queixumes todo o dia: ao pequeno-almoço, ao almoço, ao lanche, ao jantar. Todos os pratos: aperitivo, entradas, primeiro prato, segundo prato e sobremesa. Importante é notar que tal como o bacalhau, o queixume tem várias formas de ser apresentar e de ser comido. A que o bicho prefere é o queixume da hipocrisia.
A hipocrisia é uma menina que parece bem em qualquer lugar – pregadeira favorita da Braga Branca – usada bem no lado esquerdo, junto ao coração.
O bicho gosta de quando as pessoas querem tanto que quando têm se deixam dominar pela menina hipocrisia e se queixam igualmente porque o que queriam não era afinal bem assim. Engorda à custa da beleza eterna do descontentamento bacoco. Enche o papo com quilos e quilos de lamúrias baseadas em palcos de vida em falsos riscos de ruir. Bota corpo com pataniscas de biliosidades para com obstáculos criados em vias nunca tidas como alternativa do fluir. Quase regurgita com blasfémias descendentes da força que tem o não conhecendo afirmar não querer saber. Fortalece-se sempre! Cresce o bicho e estende os tentáculos pelo vazio craniano da desinformação.
Ele está aí. Pode ter vários nomes. O bicho chuva não é. O bicho braga ainda não. É o bicho ignorância – bicho estupidez.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

anoitece em paz

A minha manhã está profundamente enraizada em ti, até ao cotovelo. Respira fundo e pega na minha mão.
Quando morreres vou trazer trinta fadistas-poetas para cantarem o épico da aurora boreal que foi a tua vida.
Vão vir todos em fila com sapatos pretos direitos iguais e sapatos azuis esquerdos iguais. As calças de flanela aos quadrados cinzentos e brancos vão deixar ver um vislumbre dos tornozelos. No tronco vão vestir apenas suspensórios vermelhos, sendo que os que não tiverem pêlos no peito e nas costas trarão um implante artificial à base de esquilo morto.
Na mão direita vão trazer o caule de uma dália que será utilizado para bater nas pessoas que assistirem e para simularem um microfone. Na mão esquerda trarão um saco de plástico verde com a voz lá dentro.
Apenas à vez vão abrir o saco e cantar-te, isto quando, à vez, subirem para cima do teu caixão. Caixão cor de voo de graça constipada com anéis, como sempre exigiste.
A casa estará pintada de preto solidão, os móveis de branco luto, o chão de roxo paixão e o tecto de vermelho saudade.
Até lá só me resta esperar e guardar os papelinhos que tenho espalhados pelos bolsos dos meus casacos com as coordenadas de onde se encontram estes artistas.
O teu livro, fechado em ti, abro-o eu.

terça-feira, 21 de junho de 2011

casa

Ontem descobri o caminho para casa. Estava numa esquina a olhar para ti. Passaste depressa e olhaste para uma montra com macacadas pulguentas e pungentes. Decidi seguir-te pela rua abaixo, pela rua acima, pela rua ao lado… Sentiste-me, eu sei. Eu sei porque te senti a sentires-me. Mas não fizeste nada em relação a isso. Entraste no barco e eu fui atrás. No baloiçar do mar, das ondas, do sal, sorriste e desapareceste dentro de mim. Saltei para fora do barco e encontrei a Casa. Sorri completo e feliz pela primeira vez desde o início do mundo.

domingo, 19 de junho de 2011

19, dezanove, IXX

Quando perdemos uma capacidade, ou ficamos com ela diminuída, diz-se por aí, que os outros atributos aumentam – como diz o velho ditado: o que não mata engorda. No entanto a nossa incapacidade para a não estereoscopia coronária quase sempre nos emagrece a vontade.
Seremos capazes de sem vontade aumentar as outras capacidades?
Quem já passou por isso sabe que de algum lado inesperado e recôndito, surge um outro nós, de pala no olho direito do coração, capaz de inimagináveis projecções tridimensionais de vida.
Estas projecções inicialmente, para nós, servem para os outros verem que está tudo bem – construímos daqui a capacidade de estereoscopia a sós.
Restam-nos duas saídas assim:
ou nos mantemos com esta solidão capazes de avançar com apoio em projecções mais importantes que secundárias – a pluviosidade local, os ombros alheios, as epopeias construtivas da alienação;
ou por outro lado encontramos outra pessoa que seja a metade necessária para a estereoscopia completa.
Ambas tarefas hercúleas porque de qualquer das formas mudamo-nos por dentro e a esquerda, que nunca pensamos de outra forma, passa a direita, o fim a início, a montanha a planície.
Torna-se tudo tão agradavelmente mais difícil do que qualquer quimera solitária. Pomos os óculos e partilhamos a chuva em profundidade… nunca a mesma chuva, nunca os mesmos óculos, nunca os mesmos nós.

quinta-feira, 17 de março de 2011

espirais de soluções

As ratazanas saíram das chávenas de chá que estavam no armário. Tomaram conta de todos os bebés enquanto os pais saíram para tomar café numa loja de rebuçados espirais. O efeito do acontecido foi inócuo. Os bebés revoltaram-se e arrancaram à dentada as orelhas das ratazanas que, infelizes e virtualmente surdas, fugiram de regresso a um mundo que nunca as acolheu. O medo do retorno plantou os pais nos cafés com raízes profundas, deixando os bebés sozinhos e gulosos de espirais em rebuçado.
Uma nave colidiu no tempo e eclodiram todas as resoluções dos problemas.

quarta-feira, 2 de março de 2011

alínea a)

Ouvi uma música de metralhadora.
O som era repetente
enfim!
Tirei restos mortais
dos ouvidos
e senti a liberdade
de estar desamparado
(como se voasse).
Caí ao
som da cascata!

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

dezassete, 17

Não somos palhaços, nem renas rudolfos, nem estamos constantemente constipados. Mas temos sim uma luz vermelha na ponta do nariz. Daquelas luzinhas que indicam, como num televisor ou numa aparelhagem, o stand by: a espera.
Uns lidam melhor que os outros, mas no fundo qualquer um se irrita com isto – uma sombra no nariz como se de uma mosca se tratasse.
Há quem ignore e viva constantemente assim, a gastar energia de forma inócua.
Há quem tente enxotar distraidamente a mosca de várias formas – pode-se pintar o nariz de azul, tapar com base, colocar um penso rápido (de efeito célere), fingir de fingimento fingido que está mesmo tudo como queremos – mas a mosca regressa sempre. Pois é.
Há quem tente pegar no respectivo telecomando para acordar o dia. O problema é que este nem sempre está ao alcance. Cansa tentar chegar-lhe.
Cansa a luzinha vermelha na ponta do nariz, o stand by: a esperança.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

bolsos cheios de expectativas

Mordaz, ele bebia um gole de licor enquanto procurava onde tinha posto, dentro do bolso, as suas últimas ideias. Trazia-as perto das ideologias, num pacote pequeno de plástico que tocava Miles Davis cada vez que se abria.
Mas não sabia onde o tinha posto. Em qual dos trinta e um bolsos estava.
Entretanto o licor, de sabor ténue a álcool, terminou ficando mais uma ferida, se não curada, pelo menos desinfectada.
Sem ideias e vazio de ideologias decidiu perder a paciência e para isso mudou de bolso, sem olhar, distraindo-se com o vazio, o pacote de lã onde a guardava.
Procurou uma maçã numa boca para morder. A primeira mulher nessa situação gostou, mas preferiu regressar à maçã. Ao separarem-se tropeçou e de um dos trinta e um bolsos caiu-lhe o pacote de borracha que continha o mapa dos bolsos.
Abriu-o e, depois de analisado o mapa, redescobriu as ideias. Poderia ter posto em prática algumas delas, mas estava sem paciência para isso.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

dezasseis, 16, diz às seis

Vivemos num processo de culpa quase constante. Herança pesada da tradição.
Temo-la externa, acusatória e arranhada nas íris. Dedo apontado à cara. Confunde-nos, aborrece-nos, reformula-nos e oferece-nos um resultado palpável nas entrelinhas. Insatisfeitos satisfazemo-nos com isso e oferecemo-la de regresso aos outros - e de bom grado:
- Anda amigo; vem crescer no mundo dos grandes. Vamos todos ao Gólgota expiar os nossos pecados. Não digas que não… senão.
Ou então, coitadinhos, viramo-nos para o lado e pedimos retrocesso, sublinhados, dados estatísticos que comprovem a fórmula original:
- Anda amigo, diz-me que estou certo; que é verdade; que é sempre assim.
Depois existe a culpa interna. Irregulada pelos de fora e incontrolável por nós. Aquela menina que remói dentro do peito, o cadáver escondido nas sombras do movimento dos cabelos, o pisa-papéis coronário. Traço genético que nos faz semi-viver imbuídos no seu aroma de formol.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

a tragédia do sr. godinho

Godinho habitava entre as árvores e as rãs da floresta encantada. Todos os dias ia às amoras e às framboesas... No outono aos cogumelos.
Certo dia numa das sua caminhadas aconteceu a tragédia!!! (rufar de tambores) Apaixonou-se. E logo por quem! Pela árvore mais alta e fria da floresta.
Nunca lhe chegaria, nunca ela o conseguiria acompanhar, o papel passou a parecer-lhe mórbido e as amoras sangue.
Godinho infeliz decidiu fechar as portas do silêncio e gritar aos quatros ventos a sua tragédia. Apenas dois dos ventos o ouviram tombando a árvore em cima de Godinho.
Fertilizaram juntos a mesma terra.