sexta-feira, 3 de abril de 2009

treze, treuze, 13

Desde (o meu) sempre que as pessoas se queixam da repetição. No entanto repetem-se lenitivamente.
A rotina que nos circunda causa um inevitável tédio reconfortante ao qual nos agarramos apenas quando o abandonamos. Mas tirando o abandono, não se fazem esforços para modificá-lo por dentro. Para transformar os motivos de queixa eclipsando-os em nuvens de satisfação. Talvez porque se tal acontecer depois não haja tédio onde regressar, e isso é algo terrificante.
Por isso, paramos quase todos os dias no mesmo sítio para conjecturar as várias maneiras de fugir de Braga. Paramos em Braga sempre a conjecturar outro sítio onde possamos parar.
Fugimos e deixamos cá ficar a rotina para podermos voltar, como boomerangs lançados por vontades alheias.
Transformar Braga em algo desrotinizante seria, desta forma, negar a própria cidade. Sem ter que parar no mesmo sítio, sem sentir a repetição lenta de frames da cidade debaixo das pálpebras, estaríamos obviamente noutro sítio que não a nossa casabraga. Desaparecia-nos.
Eu queria mudar a cidade por dentro mesmo correndo o risco de ficar sem pára-quedas.
(vamos todos fazendo o esforço, mas uma almofada, apesar de entediante, é sempre uma almofada)

onze

E os nomes dos de Braga são: todos (todos os nomes de todos o que guardam uma sinapse que seja com a dita).

doze

… e por falar em espaço neuronal ocupado com a cidade.
Quando reparo em mim a pensar, reparo que mais de muitas vezes me misturo a mim e envolvo os outros com a menina humedecida pelo Este. Pode parecer estranho só agora ter dado conta disso, apesar do presente documento ir crescendo desde há algum tempo, mas Braga é um sinal na pele das costas. Faz-me comichão, coço, comento, escrevo sobre isso, mas deparo-me com essa convivência mais que íntima só quando, através de um complexo jogo de espelhos, me deparo com a nudez de tal marca em mim; ou quando me dizem: “Ei! Tens um sinal nas costas.”
O jogo de espelhos serviu-me para constatar o óbvio. Ninguém me disse nada.
Será nocivo este sinal? Será melhor ir ao médico?
Não causa sofrimento significativo por isso não deve ser muito grave. E está de tal forma enraizado que dificilmente sairá. Em bom brasileiro nordestino: “É eu!”

dez

A Augusta menina que desde cedo se depara com a castração química dos sonhos. Braga, o útero viscoso de ideias abortadas.

ausência

De vez em quando todos sentimos uma sensação estranha de que falta qualquer coisa. Temos uma construção mental indefinida de algo que tem como maior semelhança o vácuo. Por vezes surgem-nos algumas coordenadas que, embora não o sejam, nos dão alguma noção de palpável.
Logo se desvanece essa noção quando temos uma pequena distracção e a única frase que a nossa parca linguagem nos permite construir é:
- Tenho a sensação de que me falta qualquer coisa.
Conquanto não seja nada de cientificamente comprovado, suponho que esta sensação de vácuo seja, comum a todos, no que diz respeito a objectos, ainda assim, relativamente a pessoas, acredito que seja mais raro, senão mesmo inexistente. Será que há mesmo alguém que diga:
- Tenho a sensação que me falta alguém.
Não me estou a referir a professores em visitas de estudo ou a rebanhos de amigos em noites de santos populares. Estou-me a referir a pessoas que fecham a porta de casa e pensam isso, que apertam os cordões dos sapatos e pensam isso, que colocam uma garfada de arroz na boca e pensam isso, que assoam o nariz e pensam isso.
Não tenho a veleidade de pensar que sou o único, mas duvido que este seja um sentimento comum a toda a humanidade.
Quando queremos referir algo indefinido somos simplificadores. As coisas que se escrevem no género feminino são coisas e as coisas que se escrevem no género masculino são coisos, logo a indefinição vem da linguística. As pessoas têm um nome, mas mesmo este tem momentos em que para os outros oscila entre coisa e coiso (com c maiúsculo) e apenas o nome não define alguém.
Quando falta alguém, o tal alguém indefinido, procuramos achar um nome, mas esse nome nem por isso preenche o vácuo.
Este vácuo, não o enquadro só ao contexto romântico do falta-me alguém para amar, ou da amizade do falta-me alguém para conversar. É um vácuo generalizado, que nos transmite apenas que na nossa vida nos falta alguém.
Quando há fogo falta-nos um bombeiro, quando há doenças agudas, um médico, quando há fé e crise, um padre. Mas e quando não há nada, nada de excepcional? Quando os dias correm na sua tonalidade cinzenta pintalgada de cores alegres? Quem é que nos falta?
Parece que estamos a jogar ao “Quem é quem?” viciado porque não sabemos o nome, nem o local semântico ao qual associar. Qual “Cavaleiro Inexistente” inexiste-nos em tudo excepto na sua apenas definível presença.
Poderia ser sufocante, mas não é, assim como provocar paranóia, mas não o faz. Pode até ser visto como positivo porque a ausência é sempre um factor que alimenta a esperança, esse bichinho cheio de apetite que funciona como motor.
Uma das vezes em que senti essa ausência foi num sonho. Estava algures numa cidade balnear e estava com quase toda agente que conheço e com quem costumo estar. Ia falando com este ou com aquela. A dada altura apercebemo-nos todos que em acontecimentos que recordávamos havia mais um de nós:
- Eu, o Artur, o Diogo e “ele” fomos ao café.
De nenhuma maneira conseguimos saber quem era ele. Não sabíamos o nome, apenas tínhamos a informação acerca do género (neste caso masculino), não sendo, apesar disso, possível defini-lo sequer como o Coiso. De resto tínhamos apenas a sensação de que preenchia os espaços em branco deixados, não pela nossa memória, mas por nós mesmos. Chegava-nos ao corpo a impressão de que “ele” tinha as características que todos tínhamos e todas as que gostaríamos de ter. Toda esta informação não nos permitia ser mais definidos porque as perspectivas que temos de nós próprios e das nossas expectativas varia entre cada um. Seria, talvez, uma “folie a deux” partilhada por todos. Não existia em nós a ideia bacoca de sermos todos e o nosso espírito de grupo, ou do um mais um igual a três, ou a ideia de deus, anjo ou demónio. Sabíamos que estava lá, só não sabíamos quem, nem como, nem porquê?
Apesar da confusão do sonho acordei bem-disposto e com as ideias organizadas. Não sou pessoa de acreditar no destino, intuição, premonição ou qualquer coisa parecida. Mas passei a acreditar que temos definitivamente espaços vazios que muito raramente se manifestam e ainda mais raramente se preenchem.
Lembrei-me ao acordar que conheci pessoas que vieram preencher esses espaços previamente manifestados. E normalmente só me apercebo disso quando o vácuo regressa com a oclusão dessas mesmas.